
O 25 de Abril de 1974
O testemunho de um jovem diplomata português então colocado na Delegação de Portugal junto da NATO em Bruxelas
Transição do MNE da ditadura para a democracia
O fator porventura mais importante relativo à transição do MNE da ditadura para a democracia, foi um fator pessoal chamado Mário Soares. Nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros logo a seguir ao 25 de Abril, embora tenha estado no cargo uns escassos 9 meses, esse período foi crucial para o MNE e para a diplomacia portuguesa.
Mário Soares compreendeu bem que não podia permitir que se criasse um vazio no MNE e na diplomacia portuguesa que certamente seria aproveitado para um assalto por indivíduos sem preparação e com objetivos políticos determinados, alheios à implantação de uma democracia em Portugal, entre eles comunistas e oportunistas, com efeitos desastrosos para a política externa portuguesa e para o país.
Viu, por outro lado, que havia gente de grande qualidade no MNE, de grande competência profissional, nos vários níveis, nomeadamente no de embaixador.
Havia dossiers de grande importância e delicadeza política como os relativos à descolonização, às comunidades europeias, às relações com os EUA e NATO, às relações com as instituições financeiras internacionais, à abertura aos países do leste europeu e ao mundo.
Mário Soares sentiu que precisava de um corpo de funcionários especializados como é o corpo diplomático para lidar com esses dossiers.
Portanto, excetuando alguns funcionários mais identificados com os piores aspetos do regime anterior, ou que não aceitaram o novo quadro político emergente da Revolução, foram poucos os que foram afastados por razões políticas.
Assim, o que foi feito foi rodar uma boa parte dos chefes de missão. Nem todos. Por exemplo o Embaixador em Washington continuou no seu posto.
Foram feitas algumas nomeações políticas, não muitas: Madrid, Paris, Lusaca, Cuba e pouco mais.
De uma forma geral, a estrutura de funcionamento e o corpo de funcionários do MNE mantiveram-se inalterados e a carreira diplomática continuou a sua atuação dentro do quadro profissional e normal.
Esta continuidade, quanto aos meios, mas não quanto à substância da política externa, evitou também que a transição fosse aproveitada pela emersão de funcionários medíocres que se colaram repentina e oportunisticamente à Revolução e a certos sectores políticos então dominantes. De nada lhes serviu.
Em contraste com a instabilidade governamental – nos 10 anos que se seguiram ao 25 de Abril houve 13 Ministros dos Negócios Estrangeiros – a diplomacia portuguesa assegurou nesse período uma estabilidade que teve uma importância fundamental na defesa dos interesses do Estado português.
Houve, contudo, momentos de incerteza derivados de um PREC tumultuoso e imprevisível, a que só o 25 de novembro veio a pôr cobro.
O momento de maior incerteza terá sido aquando da nomeação de Mário Ruivo para Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 8 de agosto de 1975, quando eu estava como Encarregado de Negócios na NATO. Homem inteligente e prestigiado, a sua ligação ao PCP não lhe deixaria, contudo, grande margem de manobra. Mas o pouco tempo que esteve no cargo – 42 dias - não lhe permitiu qualquer ação significativa.
Em relação ao posto no qual eu prestava serviço, a delegação de Portugal na NATO, em Bruxelas, a mudança mais significativa foi a do Embaixador, que era então o Albano Nogueira.
Um intelectual, espírito independente e profissional de categoria, respeitado entre os seus pares, foi então colocado em Londres tendo sido mais tarde Secretário-Geral do MNE.
Foi substituído na NATO pelo Embaixador Freitas Cruz que era até então Diretor Geral dos Negócios Políticos. Esteve no posto até novembro de 1978, altura em que foi nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros. Foi, mais tarde, Embaixador em Londres e depois em Madrid, tendo falecido enquanto neste último posto, num acidente de viação.
Era um diplomata inteligente, experiente e hábil. Um grande profissional.
Poucas alterações houve para além da mudança de Embaixador.
Na NATO a nomeação de novos funcionários exige um processo rigoroso de acreditação de segurança para garantir a confidencialidade das matérias tratadas, que transcende, como é evidente, o nível nacional.
Daí que todas estas mudanças tivessem que ser feitas com grande prudência para evitar objeções por parte da organização.
No que me diz respeito, não sou a pessoa mais indicada para falar do impacto do 25 de Abril na “casa” como nós, diplomatas, nos referíamos ao MNE.
E isto porque estava então, desde janeiro de 1974, colocado na NATO em Bruxelas, depois de ter participado nos três meses precedentes na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque.
Tinha 32 anos, estava no Ministério há 10 anos, dos quais 2 anos e meio no serviço militar obrigatório, a maior parte do qual em Macau.
Tinha tido um posto no quadro externo, na África dos Sul, onde estive 2 anos.
Depois do 25 de Abril, fiquei 5 anos e meio na NATO, tendo depois sido colocado em Hong Kong por 4 anos.
Voltei à NATO em 1983 como funcionário internacional por mais 6 anos e meio.
Regressei a Lisboa em junho de 1989, ou seja, mais de 16 anos depois do 25 de Abril.
A visão que tive dos desenvolvimentos no país e no MNE foi uma visão à distância. Falta-me, pois, a vivência dos factos.
Gostava apenas de salientar alguns pontos.
Acabado o curso de direito em 1964 fiz o concurso para o MNE e abracei a carreira diplomática não por ser salazarista ou por motivações políticas.
A profissão de diplomata atraía-me pelo gosto que tinha pelos assuntos de política internacional e pela oportunidade que a diplomacia me daria de viver experiências em mundos e culturas diferentes. Gostava de viajar ao estrangeiro. Sempre o fiz enquanto estudante universitário. Gostava de ler jornais estrangeiros (o Le Monde era a minha leitura habitual) e livros de memórias de políticos e diplomatas.
Talvez porque vinha de uma pequena vila da província e onde me sentia limitado numa atmosfera acanhada e provinciana e num país com estruturas rurais e arcaicas.
Como a generalidade dos jovens e falo da maioria dos meus colegas no MNE, ansiava pela liberdade e pela democracia, pela liberdade de expressão e de imprensa, por eleições livres, por um país moderno ao passo dos países desenvolvidos do mundo ocidental.
Para entrar no Ministério, os candidatos precisavam de ter então uma informação favorável da PIDE e, uma vez nomeados, de assinar uma declaração em que se comprometiam a respeitar a ordem constitucional vigente.
Quanto à informação da PIDE ela dizia normalmente “Nada consta”.
Recordo-me de me ter passado pelas mãos no serviço em que prestava serviço um caso do concurso a seguir ao meu em que a PIDE, em relação a um dos candidatos, informava o Ministério que o mesmo não oferecia garantias consideradas suficientes.
Numa prova de independência, o Ministério não aceitou o atestado da PIDE que não concretizava as razões da informação fornecida, admitiu o candidato, que entrou para o Ministério e teve uma carreira brilhante. Infelizmente já faleceu.
Apesar dos constrangimentos referidos e que não eram na maior parte dos casos do agrado dos jovens candidatos, não eram certamente do meu agrado, havia, segundo penso, espaço para darmos um contributo em favor dos nossos ideais através do exercício da nossa profissão, considerada como ponte e instrumento dinâmico de mudança.
Tive ocasião na minha carreira de testemunhar casos em que embaixadores corajosamente apontaram nas suas comunicações para o MNE as dificuldades que sentiam nos seus postos dada a rigidez e o imobilismo que caracterizavam a política governamental e defenderam uma evolução no sentido de uma democracia parlamentar e de uma política colonial mais realista e mais conforme com os interesses das populações, aberta à sua participação na governação e processo politico e a compromissos cada vez mais inadiáveis.
Finalmente gostaria de sublinhar que sempre entendi que os diplomatas defendem fundamentalmente os interesses do Estado – do país e dos portugueses – não devendo ser membros de partidos políticos ou enfeudar-se a atividades político-partidárias. Perdem a sua independência quando o fazem, devendo perder a sua qualidade de funcionários de carreira e assumirem o estatuto de nomeados políticos.
O 25 de Abril e a NATO
Vivi quer o 25 de Abril, quer o 25 de novembro, longe da Pátria, em Bruxelas, onde estava colocado como jovem diplomata na Delegação de Portugal junto da NATO, onde permaneci até 1979.
O 25 de Abril foi acolhido pelos nossos parceiros da NATO, as principais nações democráticas do mundo, algumas delas muito críticas do regime de Salazar e Caetano, como a Holanda e a Noruega, com um sentimento positivo de satisfação e esperança e uma pré-disposição de apoio e ajuda.
A atitude inicial no seio da Aliança foi caracterizada por uma prudência expectante.
À medida que o nosso processo revolucionário se foi desenrolando com os seus excessos e derivas não democráticas, entre um terceiro-mundismo e um resvalamento para a esfera de influência da União Soviética, com a participação de ministros comunistas no Governo, cresceu naturalmente a preocupação dos nossos aliados.
Não vou aqui descrever a evolução da situação em Portugal com as suas inúmeras peripécias, sucessivos governos, volte-faces, golpes e contragolpes, agitação e alvoroço permanente, manifestações, assaltos, incêndios, barricadas, prisões e saneamentos selvagens.
Se era difícil para nós, portugueses, entusiasmados como estávamos, observando de Bruxelas a situação, compreendermos e avaliarmos o que se passava em Portugal e fazermos previsões sobre o nosso futuro, imagine-se a perplexidade e o alarme dos nossos parceiros da Aliança, vivendo na tranquilidade, sob regimes estáveis e democráticos.
Quantas vezes os militares portugueses em serviço na NATO me diziam: “agora é que vai rebentar a guerra civil, não há outra saída”, para no dia seguinte me dizerem: “ainda não foi desta”. Continuava, contudo, a confusão, com clivagens e fações a digladiarem-se numa luta desenfreada pelo poder.
Foi um parto difícil até que Portugal pudesse renascer de novo.
Não vou aqui também descrever as atitudes individuais dos nossos aliados.
Houve, todos nós sabemos, quem chegasse a dizer que Portugal estava perdido para o Ocidente, que não havia nada a fazer, que nos tornaríamos numa Cuba da Europa.
Houve quem visse nisso alguma vantagem pelo efeito de vacina que evitaria novos casos. Seria uma lição dura para os portugueses, mas útil para outros países.
Não foi esta, todavia a posição geralmente assumida pelos nossos aliados, que se manifestaram abertos e prontos para nos ajudarem a ultrapassar o momento difícil que atravessávamos.
Fui testemunha de conversas em que tal nos foi afirmado a alto nível político, com sinceridade.
Mas a Organização do Tratado do Atlântico Norte não existia para fazer face ou intervir em situações de ordem interna, era sim uma aliança coletiva político-militar de natureza defensiva cujo objetivo era garantir a segurança dos seus membros perante uma ameaça externa, a da União Soviética e dos seus próceres.
O problema, no entanto, que se punha de imediato era o da “quebra de segurança” (security breakdown) resultante da participação de ministros comunistas no Governo português e da situação de extrema confusão nos ministérios.
Havia assim um elevado risco de quebra das regras de segurança quanto à confidencialidade de matérias sensíveis tratadas pela Aliança como as matérias nucleares ou os planos de forças.
Dadas as circunstâncias, o Secretário-Geral da Organização, o holandês Joseph Luns, que conhecia bem Portugal onde tinha servido como diplomata e que sentia uma verdadeira simpatia pelo nosso país, reuniu os embaixadores, com exclusão do português, que, entretanto, já tinha sido mudado depois do 25 de Abril e que era então o Embaixador Freitas Cruz.
Era esta uma situação inédita, uma vez que na NATO prevalecia a regra do consenso, ou seja, da unanimidade, em que todos os membros da Aliança têm o direito de participar.
Entendeu-se, na linha proposta por Luns, que o melhor seria adotar uma atitude pragmática que de uma forma casuística e informal evitasse que matérias classificadas e consideradas sensíveis chegassem a Lisboa.
Procurar-se-ia desta forma evitar que fossem tomadas decisões formais que pudessem criar uma situação irreversível ou extremar as posições recíprocas.
Criou-se assim uma situação delicada, difícil de gerir de parte a parte.
No entanto o interesse era mútuo.
Nem a organização desejava uma rutura prematura com Portugal, nem o nosso país, a começar pelos elementos mais revolucionários, tinham interesse numa rutura com a NATO, que certamente levaria ao nosso isolamento e a um corte das ajudas quer bilaterais, quer das instâncias financeiras internacionais.
Por isso “aceitámos” esta “quarentena” em que éramos colocados.
Não chegámos a assumir o nosso lugar no Grupo de Planeamento Nuclear, deixámos “voluntariamente” de nos fazer representar nas reuniões mais sensíveis e de receber informações com uma alta classificação de segurança, comprometemo-nos a não transmitir para Lisboa informação secreta ou a relatar o conteúdo de certas reuniões, etc.
Houve por outro lado um cuidado especial de não colocarmos na NATO elementos que pudessem suscitar reservas ou desconfiança por parte da Organização quanto à segurança das informações. Todos tinham, como sabem, que ser escrutinados pela Autoridade Nacional de Segurança.
Tudo isto exigiu disciplina, espírito de compromisso e bom senso, a fim de que o interesse nacional pudesse ser salvaguardado numa perspetiva de longo prazo.
Esta mesma vontade de não provocar uma rutura com a Aliança verificou-se nas reuniões de alto nível político em que participámos.
Foi assim com o PM Adelino da Palma Carlos que se deslocou a Bruxelas para participar numa Cimeira da NATO em junho de 1974, e com o General Costa Gomes que ali participou na qualidade de Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas numa reunião do Comité dos Planos de Defesa também em 1974.
Em ambas as ocasiões foi reafirmada a nossa fidelidade à Aliança Atlântica e aos compromissos por nós assumidos no quadro da mesma.
Mas estas declarações pouca correspondência tinham com a realidade do PREC.
Em 29 e 30 de maio de 1975 houve nova Cimeira da NATO em que participou Vasco Gonçalves.
Em Portugal continuava a onda de agitação com as nacionalizações e ocupações de terras na sequência do 11 de março. Estigmatizavam-se as eleições, defendia-se a dissolução da Assembleia Constituinte, que foi sujeita a sequestro, acusava-se a social-democracia de apoiar, juntamente com o fascismo, as forças reacionárias e antipatrióticas. Apelava-se à mobilização dos trabalhadores e à radicalização dos militares.
Era necessário, afirmava-se, garantir o avanço das conquistas históricas do Povo português, não as derrotando por via eleitoral, devendo-se evitar a contradição entre o processo revolucionário e o processo eleitoralista.
Vasco Gonçalves, fez-se acompanhar por Rosa Coutinho.
Melo Antunes, que era o MNE, não o acompanha.
Nas declarações que faz no âmbito da Cimeira, Vasco Gonçalves procura sossegar os nossos aliados. Somos membros da Aliança Atlântica, sublinha, e desejamos continuar a ser. E reitera a nossa fidelidade aos compromissos decorrentes do Tratado do Atlântico Norte.
Mas defende uma política externa independente, aberta às relações com todos os países e o desmantelamento dos blocos.
Apela finalmente aos nossos aliados para “mais compreensão e menos apreensão”.
Quase todos os nossos parceiros pedem encontros à margem da Cimeira com o PM português.
Lembro-me que o PM inglês, Harold Wilson, trabalhista e o chanceler alemão Helmut Schmidt, social-democrata, são particularmente duros com Vasco Gonçalves.
Perante as afirmações deste, que os nossos aliados nada tinham a temer, que todos os compromissos internacionais seriam respeitados e que não estava iminente qualquer golpe comunista em Portugal, respondem que o que lhes interessa não são palavras, mas atos. E, sublinham, terras de cidadãos ingleses e alemães tinham sido ocupadas e empresas ligadas aos seus países nacionalizadas. Quanto às eleições o que viam era uma enorme ambiguidade quanto ao futuro.
Ao mesmo tempo, Vasco Gonçalves dava uma conferência de imprensa na sede da NATO que suscitou um enorme interesse por parte da imprensa internacional representada ao mais alto nível.
Foi talvez a conferência de imprensa mais longa da história da NATO. Às perguntas curtas, precisas e factuais sobre eleições, políticas seguidas e situações concretas, Vasco Gonçalves respondia sempre com longuíssimos relambórios com uma interpretação marxista da história de Portugal sobre o período de ditadura e do fascismo a que o país tinha estado sujeito.
No final da conferência Rosa Coutinho observou: “foi uma verdadeira sessão de dinamização cultural!”
Regressado a Portugal, num discurso inflamado que faz em Almada a 18 de agosto, Vasco Gonçalves vem dissipar quaisquer dúvidas que poderiam ainda existir quanto às suas fidelidades e propósitos.
Na NATO continuámos a seguir à distância a evolução dos acontecimentos, cada vez mais tumultuosos e acalorados.
Até que se dá o 25 de novembro e com ele uma reviravolta da situação, com a vitória da democracia.
Abre-se assim um novo período. Os nossos aliados tranquilizam-se e rejubilam.
Começa um programa de reequipamento das forças armadas portuguesas com a ajuda da NATO, em que tive a honra de estar envolvido nos anos que se seguiram.
A vida política estabiliza.
Em abril de 1976 a Constituição é aprovada. Têm lugar eleições legislativas. Eanes é eleito Presidente
Passámos a ser um país normal, uma democracia. Pluralista. Que é a única verdadeira democracia.
Aqui estamos 50 anos passados, com alguns problemas próprios das sociedades democráticas. Mas, livres e senhores do nosso destino.
Permitam-me que a terminar evoque a figura do General Ramalho Eanes, homem providencial e grande herói nacional do 25 de novembro, a quem tanto os portugueses devem.
E nada melhor do que citar as suas próprias palavras:
“Em abril de 1974 as Forças Armadas saíram à rua em defesa dos ideais da liberdade e da democracia. Em novembro de 1975, intervieram de novo para assegurar que a liberdade reconquistada não seria traída”.
“O 25 de Novembro representa, fundamentalmente, a vitória de um modelo de sociedade sobre a perversão totalitária que procurou destruir as Forças Armadas, para poder impor ao povo, indefeso, um modelo de sociedade que ele não escolhera.
A intervenção das Forças Armadas na defesa desse projeto democrático restituiu ao povo a sua soberania real e marcou o reencontro do seu lugar ao serviço do povo em que têm as raízes e a sua razão de ser”.
Pedro Catarino
Embaixador Jubilado
AH 17/05/2024