Sessão Comemorativa do 25º aniversário da transferência da
administração portuguesa de Macau para a República Popular da China
19 de dezembro de 2024
CENTRO CIENTÍFICO E CULTURAL DE MACAU-LISBOA
Hoje, dia 19 de dezembro de 2024, terão passado 25 anos do último dia em que Portugal exerceu a governação de Macau. O dia em que foi arriada a bandeira nacional, até então hasteada no Palácio da Praia Grande e entregue, com todas as honras, ao último Governador português de Macau, General Vasco Rocha Vieira, infelizmente impossibilitado de aqui estar presente, por razões de saúde, que num gesto patriótico apertou a bandeira, contra o peito, junto do seu coração, para ser posteriormente conservada na sua “Pátria bem-amada”, depois de cumprida a nossa missão histórica de 5 séculos. Essa bandeira está hoje no Mosteiro da Batalha à guarda da Liga dos Combatentes.
Com o seu gesto, o General Rocha Vieira deixou-nos uma imagem icónica, belíssima, que ficará para a História.
Foi um momento simbólico, dramático, que trouxe à memória de todos nós a gesta do povo português em terras do Oriente, que nos enobrece e que deve ser para todos os portugueses motivo de orgulho e de inspiração e que nos cabe, agora, a nós e às gerações futuras, evocar e honrar.
É por isso que estamos hoje aqui, quando se inaugura a Galeria dos Governadores de Macau e a exposição de fotografia de Rui Ochoa.
É para mim uma honra dirigir-vos a palavra.
Faço-o com viva emoção, como português, mas também por ter passado 14 anos da minha vida em Macau e em terras do Oriente e ter tido o privilégio de estar associado profissionalmente, como diplomata, ao processo de transferência de poderes de Portugal para a China.
Poderia intitular esta minha intervenção “um Milagre chamado Macau”.
A História da presença portuguesa em Macau, desde o seu início no século dezasseis e a sua resiliência e lustro são uma permanente fonte de deslumbramento que nos convida a uma retrospetiva e ao mesmo tempo a uma projeção do futuro.
E isto, porque a transferência de poderes, se constituiu o fim de um ciclo não só da História de Macau, mas também da História de Portugal, constituiu também, é importante assinalá-lo, o limiar de uma nova era.
Foi esta visão da História, do seu curso inelutável e da construção do futuro e preservação de uma herança deixada pelos portugueses, que ditou a essência da estratégia de Portugal e que me conduz à convicção de que os nossos objetivos, bem como os objetivos da China, foram bem conseguidos.
Permitam-me que enfatize que não há qualquer antítese entre o VELHO MACAU e o NOVO MACAU. É no NOVO MACAU que devemos focar as nossas ações com os olhos postos no futuro e nos novos horizontes abertos à Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), mas não devemos perder a perspetiva da História e a sua importância.
Macau constituiu, desde sempre, o marco mais saliente de uma relação histórica entre Portugal e a China, sem paralelo no Mundo e que deve ser valorizado.
E embora qualquer evocação histórica envolvendo a China deva ter em conta as sensibilidades chinesas face a um passado que lhe trouxe tantas e tão duras humilhações, não posso deixar de sublinhar que a relação histórica com Portugal, fique bem claro, foi bem diferenciada de qualquer outra.
Fomos os primeiros a abrir os mares à navegação e ao comércio numa escala global e a chegar à China.
Facto extraordinário para um país com meios tão limitados.
Nada nos deteve.
Que grande lição para as presentes gerações!
A China, um país distante, com uma civilização milenária, era então um país continental, fechado, virado sobre si mesmo, preocupado sobretudo com a sua unidade territorial, com a sua segurança e com a sua estabilidade e coesão internas.
Por tudo isto, constituiu um facto também extraordinário, único, que a China, com toda a sua dimensão geográfica e populacional, zelosa da sua integridade territorial e hostil a qualquer penetração vinda do exterior, tivesse condescendido com o estabelecimento dos portugueses em solo chinês, com carácter duradouro, sem que para tal fosse requerido o uso da força ou meios humanos e económicos significativos, de que obviamente não dispúnhamos.
Durante cerca de 300 anos, Macau foi o único entreposto na China administrado por um país estrangeiro, uma porta aberta ao comércio e à navegação.
É certamente, também, um facto extraordinário que Macau tenha permanecido durante quatro séculos e meio sob administração portuguesa até ao final do século XX, ultrapassando geração após geração, todas as mutações políticas da História da China – Dinastia Ming, Dinastia Qing, República, Kuomintang, Ocupação Japonesa, China Comunista, Revolução Cultural.
Apesar da sua relevância para a China se ter gradualmente atenuado com o evoluir dos tempos, Macau manteve sempre um papel útil que assegurou a continuidade de um “status quo” que levou a China a coibir-se de procurar pôr-lhe termo até que considerasse que as condições estivessem maduras para a sua reintegração como via para a reunificação da Nação Chinesa, seu objetivo primordial.
Resolvida a questão de Hong Kong em 1984, os governos da China e de Portugal decidiram, de comum acordo, por ocasião da visita oficial à China do Presidente António Ramalho Eanes, em maio de 1985, encetar negociações que levaram à assinatura, em 13 de abril de 1987, de uma Declaração Conjunta, assinada pelos Primeiros Ministros dos 2 países, respetivamente Aníbal Cavaco Silva e Zhao Ziyang, a que foi atribuída a força de um tratado internacional, registado nas Nações Unidas.
Portugal entendeu, em toda a sua clarividência, que não devia obstaculizar as propostas chinesas.
A posição portuguesa, fixada desde 1975, logo após o 25 de abril e confirmada pela Constituição de 1976 e pelo Acordo para o Estabelecimento de Relações Diplomáticas entre Portugal e a China, que teve lugar em 1979, teve nomeadamente em conta nunca Portugal ter tido uma soberania completa e perfeita sobre Macau, reconhecida como tal pela China e o facto de a população ser na sua esmagadora maioria chinesa. Macau sempre foi um enclave na China, que esta nunca reconheceu como uma colónia sob a soberania de Portugal, mas sim como território chinês sob administração portuguesa.
Assim, estabelecemos como objetivos a salvaguarda dos interesses da comunidade portuguesa de Macau e a garantia dos seus direitos e liberdades, a manutenção da estabilidade e da prosperidade do território e a continuidade do seu modo de vida, o reforço das relações entre Portugal e a China e a preservação do papel de Macau como elo de ligação entre os 2 países.
No fundo, compreendemos realisticamente que não nos podíamos opor à realidade do poder, ao curso da História e que só tínhamos a ganhar com uma boa colaboração com a China.
As negociações para a Declaração Conjunta decorreram num espírito amigável e construtivo e a transição decorreu de forma harmoniosa com a parte portuguesa assumindo todas as suas responsabilidades e a parte chinesa dando o seu apoio e colaboração, com base numa consulta franca, permanente e minuciosa, através dos canais diplomáticos.
Permitam-me que volte a referir mais um facto extraordinário que merece ser realçado: que Portugal e a China se tenham entendido e que através do diálogo tenham conseguido, apesar de todas as diferenças culturais, uma transferência pacífica e tranquila de poderes em Macau.
Pela nossa parte, cumprimos o nosso papel histórico preservando a dignidade de Portugal, alcançando os objetivos que nos propusemos e assegurando uma transferência de poderes com solenidade e grande elevação, num espírito de amizade e entendimento.
Julgo poder dizer que os objetivos fundamentais da China foram igualmente conseguidos dentro de uma assinalável conjugação de vontades: a reintegração de Macau na China, feita em paz e através do diálogo, a entrega da administração de Macau aos chineses de Macau com um alto grau de autonomia, a manutenção da estabilidade e da prosperidade e a resolução dos problemas como a oficialização e utilização da língua chinesa, a localização dos recursos humanos e do ordenamento jurídico e a criação de um bom ambiente internacional.
Volto a salientar o meu ponto inicial: o começo de um novo ciclo, de uma nova era que então se iniciava.
A História de Macau não terminou às 24 horas do dia 19 de dezembro de 1999, momento fugaz, imaterial, que logo se esgotou com o início às zero horas do dia 20 de dezembro e o começo da vida da RAEM, um grande momento para a China, que justifica que hoje, passados 25 anos Xi Jinping se desloque à RAEM e que qualifique Macau como uma verdadeira pérola, “Joia da Coroa”.
Os 450 anos da nossa presença em Macau não se esfumaram, nem se esgotaram num tudo que passou a ser nada, nem a vida da RAEM resultou de um nada que passou a ser tudo.
A Humanidade renova-se numa continuidade que é assegurada por uma sucessão de gerações que vão deixando a sua pegada e uma herança para as gerações futuras.
No caso de Macau, essa herança de matriz luso-chinesa, foi toda uma realidade social, cultural, económica e política, que permitiu a uma comunidade de gentes - chineses, portugueses e outros - continuar a sua vida e o seu labor a partir da transferência de poderes sob uma nova bandeira.
Toda a obra que a Administração portuguesa deixou e a ação diplomática por nós desenvolvida tiveram em vista uma perspetiva de futuro.
Deixámos em 20 de dezembro de 1999 um território com finanças sãs, com instituições operacionais e com excelentes infraestruturas que permitiram ao Governo da RAEM assumir, num quadro de estabilidade as suas responsabilidades, numa situação confortável e prosseguir na senda do progresso.
O grande sucesso da transferência de poderes foi que ela se processou, não é demais sublinhar, pacificamente e de uma forma ordenada, com base numa negociação e num diálogo construtivo.
Como teria sido desejável que o mesmo tivesse acontecido com as nossas descolonizações!
Que grande lição para o Mundo e para a Humanidade, que continua tristemente envolvida em tantos conflitos sangrentos e destrutivos.
A atitude da China foi decisiva, apoiada na visão de uma grande figura, de um gigante político, que foi Deng Xiaoping, principal artífice da transformação da China na atual superpotência global, 2.ª economia mundial, que preparou e abriu o caminho para a solução da questão do futuro de Macau através de um processo negocial, baseado na fórmula “um país, dois sistemas” e prevendo um período de transição de 12 anos para preparar a transferência de poderes de modo a que a mesma se fizesse pacificamente com base na continuidade e num entendimento amigável. Genial.
A compreensão e a colaboração de Portugal também constituíram fator decisivo, bem apreciado pela China, para que o processo fosse coroado de êxito. Honra seja feita à diplomacia portuguesa, que conduziu as negociações e o processo de consulta, durante o período de transição, mantendo a defesa das nossas posições de princípio, o respeito mútuo e um espírito de compromisso que levou a um entendimento honroso com a China.
25 anos após a transferência de poderes, a RAEM é hoje um território próspero com uma vida e autonomia próprias, com um desenvolvimento mais que notável que tem dado continuidade à herança recebida, honrando basicamente os termos da Declaração Conjunta.
A vida em Macau continua a ser fácil e agradável, numa atmosfera de estabilidade.
A convivência entre as diversas comunidades, nomeadamente com a portuguesa, processa-se com naturalidade e respeito mútuo. As instituições têm funcionado dentro de uma normalidade e um elevado nível de eficiência.
Macau tem hoje um dos rendimentos “per capita” mais altos do mundo, com uma reserva financeira, com mais de 600 mil milhões de patacas e é um território com um alto nível de desenvolvimento social. O progresso da RAEM, nos últimos 25 anos, tem sido inimaginável. Macau é hoje uma grande metrópole. Com 6 universidades para além dos diversos institutos de ensino superior. Mais de 20.000 estudantes. 34 milhões de visitantes em 2024. Extraordinário.
Numa atitude de grande pragmatismo e visão de longo prazo, Pequim viu que Macau podia assumir uma significativa funcionalidade para os seus interesses estratégicos, com benefícios quer para a RAEM quer para a China, se preservasse a sua diversidade e especificidade e a sua vocação histórica e papel tradicional de entreposto.
A preservação do património arquitetónico e da sua identidade cultural, considerados como uma mais valia para Macau, como Centro Internacional de Turismo e Lazer, a utilização de Macau para a difusão da língua portuguesa e para um ensino universitário de carácter internacional, tirando partido da sua herança histórica e do seu multilinguismo e focado nas tecnologias modernas e a criação do Fórum para a Cooperação Económica com os Países de Língua Portuguesa, têm sido áreas privilegiadas pela RAEM, com o encorajamento e apoio de Pequim.
De realçar igualmente o reconhecimento pelo Governo da RAEM do papel importante da comunidade portuguesa residente em Macau.
Extraordinária a cobertura que a Televisão Chinesa no seu canal Internacional – CGTN – tem dedicado nos últimos dias a Macau e ao seu património arquitetónico e cultural. Fantástica publicidade para Portugal.
O contexto atual da RAEM abre perspetivas favoráveis para que os seus índices de desenvolvimento social e económico continuem a processar-se nos próximos 25 anos e para além de 2049, num nível elevado mantendo a estabilidade, reforçando a prosperidade e bem-estar da população e assegurando a continuidade das instituições existentes.
Da mesma forma, as perspetivas são favoráveis para um estreito relacionamento entre a RAEM e Portugal e para a utilização de Macau como plataforma para a cooperação com a China.
A autonomia da RAEM, que está bem consolidada e a sua singularidade continuarão a ser naturalmente ativos importantes, que importa preservar e reforçar e que são perfeitamente compatíveis e conciliáveis com a inevitável progressiva integração da RAEM na RPC e no espaço económico adjacente, que resultará de iniciativas como “UMA FAIXA, UMA ROTA” e “A GRANDE BAIA” e que certamente representará significativos benefícios para o desenvolvimento da RAEM.
São tudo, oportunidades e vantagens competitivas para Portugal que devem ser aproveitadas e maximizadas para benefício de ambas as partes. É uma matéria que merece um tratamento específico, mas que transcende o objeto da minha intervenção.
Permitam-me que dirija uma saudação especial ao novo Chefe do Executivo da RAEM, Sr. Sam Hoi Fai, eleito pelo Colégio Eleitoral, que tomará amanhã posse do cargo, bem como ao seu antecessor, Sr. Ho Iat Seng.
Dirijo, também, uma saudação muito cordial e o agradecimento pela presença e participação, nesta sessão, de Sua Excelência o Embaixador da República Popular da China, Sr. Zhao Bentang, bem significativa das boas relações entre a China e Portugal e da valorização que o seu governo atribui à forma exemplar como a questão de Macau foi resolvida.
Tem também um significado muito especial a mensagem de Sua Excelência o Presidente da República associando-se a esta comemoração dos 25 anos da transferência de poderes em Macau.
Macau permanecerá sempre como um exemplo para o Mundo, que honra Portugal e a China e todos os que contribuíram para que o processo de transferência fosse possível e se materializasse com sucesso.
Macau continuará, estou certo, a constituir um elo sólido e duradouro entre Portugal e a China, dois países ligados pela História e uma convivência pacífica multisecular.
Termino fazendo um apelo aos agentes políticos, económicos e culturais, aos meios de comunicação social, às universidades, aos juristas, às instituições da sociedade civil para que não virem as costas a Macau e para que se empenhem na preservação da memória do seu passado e na construção do seu futuro sob a bandeira chinesa em ligação com Portugal.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Feliz Natal para todos.
Lisboa, 19 de dezembro de 2024
Pedro Catarino
Embaixador Jubilado