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25.º Aniversário da transferência de poderes em Macau de Portugal para a China e do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau

I – Um processo bem-sucedido

Perspetiva Histórica

Após terem, aquando da visita oficial do Presidente António Ramalho Eanes à China em 1985, acordado encetar negociações sobre a questão do futuro de Macau, Portugal e a China, como resultado das mesmas, assinaram, em 13 de abril de 1987, a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau (DC), ratificada no ano seguinte, determinando que a República Popular da China voltaria a assumir o exercício da soberania sobre Macau, até então sob a administração de Portugal, em 20 de dezembro de 1999.

Em 31 de março de 1993, a Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, adotou, por seu lado, a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), promulgada pelo Presidente da República Popular da China para entrar em vigor na referida data de 20 de dezembro de 1999.

Estes dois instrumentos, o primeiro, a Declaração Conjunta, resultante de negociações diplomáticas entre dois estados soberanos, com o estatuto e valor de um tratado internacional bilateral, registado nas Nações Unidas pela China e por Portugal e, o segundo, a Lei Básica, aprovado pelo principal órgão legislativo da RPC, especificam um conjunto de princípios e políticas básicas que deverão vigorar na Região Administrativa Especial de Macau a partir de 20 de dezembro de 1999.

A transferência do exercício de soberania sobre Macau de Portugal para a China e o estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, constituem um marco histórico, notável a todos os títulos, que veio pôr termo à governação de Macau por Portugal durante um período de perto de quatro séculos e meio.

Este ano, em 20 de dezembro, terão passado 25 anos desse marco histórico, ou seja, metade do período de 50 anos, convencionado na Declaração Conjunta, para o compromisso assumido solenemente pela China de que “não serão aplicados o sistema e políticas socialistas, mantendo-se inalterados os sistemas social e económico, bem como a respetiva maneira de viver”, da mesma forma que as políticas fundamentais e as estipulações constantes da Declaração Conjunta e da Lei Básica.

As reflexões que se seguem procuram pôr, numa perspetiva histórica, a nossa chegada e permanência contínua e ininterrupta em Macau durante tão longo período e o exemplo que demos ao Mundo de como as questões mais intricadas e complexas se podem resolver pacificamente de forma construtiva, na base de um entendimento através do diálogo, salvaguardando os interesses das populações e, sobretudo, a preservação da paz, essencial para os avanços civilizacionais e progresso da Humanidade.

Procurarei ainda revisitar a fase da transição de Macau, entre a entrada em vigor da Declaração Conjunta e a Transferência de Poderes, que tão importante foi e que constituiu um fator decisivo para o sucesso de todo o processo.

Não vou a Macau há mais de 20 anos, desde 2002, ano em que deixei o posto de Embaixador em Pequim, onde servi de 1997 a 2002. Durante esse período tive a oportunidade de estar presente, em 1 de julho de 1997, na cerimónia do retorno à China de Hong Kong, onde fui Cônsul-Geral de 1979 a 1982. Estive igualmente presente em 20 de dezembro de 1999, na cerimónia do retorno à China de Macau, onde vivi, primeiro, de 1970 a 1972 e onde tive mais tarde o privilégio e a honra de acompanhar e participar, de forma ativa, no processo de transição, de 1989 a 1992, como Chefe da Parte Portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto (GLC), de que darei testemunho mais adiante no presente texto.

Os mais de 14 anos em que estive profissionalmente, como diplomata, ligado à vida política da China e de Macau, fazem com que siga com particular interesse tudo o que diga respeito àquele território e aos desenvolvimentos na RAEM, sobretudo através da imprensa portuguesa de Macau que leio regularmente.

No ano corrente, em 20 de dezembro, farão, como já referi, 25 anos que teve lugar a transferência da administração de Macau de Portugal para a China, ou seja, terá passado desde essa transferência metade do tempo em que estarão em vigor os compromissos assumidos pela China relativamente ao território e consubstanciados na Declaração Conjunta e na Lei Básica.

Fará, portanto, sentido que procure pôr em perspetiva o que a presença portuguesa em Macau, durante quase 450 anos e o processo de transição e transferência de poderes de Portugal para a China deixaram para o futuro, quer para o próprio território de Macau e seus habitantes, quer para as relações entre Portugal e a China.

Hoje, como no passado, Macau constitui o marco mais saliente de uma relação histórica entre Portugal e a China, sem paralelo no Mundo e um fator da maior relevância nas relações entre Portugal e a China.

Fomos os primeiros a abrir os mares, numa escala global, à navegação e ao comércio e a chegar à China. Facto extraordinário, em si mesmo, para um país com meios tão limitados ter chegado às costas da China, antes de qualquer outro país ocidental. Como tal foi possível?

Um país pequeno, tão distante, do outro lado do mundo, com uma reduzida população, sem grandes recursos, mas que na época se encontrava na vanguarda do conhecimento das ciências náuticas, da arte de navegar, da cartografia, da geografia.

Uma grande coragem dos portugueses de então, um espírito de aventura e uma imensa ambição terão, também, certamente contribuído para tal.

Encontrávamo-nos numa fase da nossa História, focada na expansão marítima, em que procurávamos horizontes alargados e oportunidades para desenvolvermos o comércio.

A China era então um país continental, fechado, virado sobre si mesmo, preocupado sobretudo com a sua unidade territorial, com a sua segurança e com a sua estabilidade e coesão internas.

Com uma civilização milenar, ciosa do seu isolamento, das suas instituições, do seu modo de viver e das suas tradições e costumes ancestrais, via com desconfiança influências e interferências externas que pudessem pôr em causa o seu equilíbrio, o seu mundo próprio e exclusivo.

Constituiu por tudo isso um facto, também extraordinário, único, que a China, hostil a qualquer penetração vinda do exterior, tivesse tolerado o estabelecimento dos portugueses em solo chinês com caráter duradouro, sem que para tal fosse requerido o uso da força ou meios humanos e económicos significativos, de que obviamente não dispúnhamos.

A diferença de escalas terá certamente contribuído para que a presença dos portugueses não fosse percecionada como uma ameaça. Mas a capacidade de interlocução e entendimento e compreensão recíprocas e uma atividade potencialmente vantajosa dos portugueses para os interesses da população local, terão provavelmente contribuído para a tolerância e benevolência chinesas.

O que é certo é que os portugueses se mantiveram, ultrapassando altos e baixos, naturais em todas as relações humanas e momentos menos amistosos e conflituais e gerindo os equilíbrios essenciais para uma convivência entre comunidades tão diversas. Viver e deixar viver foi sempre o lema dos portugueses em Macau. Apesar dos nossos propósitos de evangelização, respeitámos sempre e deixámos espaço para que a comunidade chinesa pudesse preservar o seu próprio modo de vida sem constrangimentos de maior.

Durante cerca de 300 anos Macau foi o único entreposto administrado por um país estrangeiro, apesar das tentativas, sempre infrutíferas, das potências ocidentais concorrentes, muito mais poderosas do que Portugal.

É certamente, também, um facto extraordinário que Macau tenha permanecido durante quase 4 séculos e meio sob administração portuguesa até ao final do século XX, ultrapassando, geração após geração, todas as mutações políticas, todos os sobressaltos, que foram muitos, da História da China – Dinastia Ming, Dinastia Qing, República, Kuomintang, Ocupação Japonesa, China Comunista, Revolução Cultural.

Foram gerações sucessivas em que Macau desempenhou um papel pioneiro constituindo um foco e uma plataforma para o conhecimento mútuo, até então praticamente inexistente, para um cruzamento das relações culturais e para contatos comerciais entre o Oriente e o Ocidente, tudo resultando em benefício mútuo de todas as partes. Um papel histórico ciclópico, para um território tão pequenino!

Macau representa na História Universal, um facto único, extraordinário, assinalando uma convivência secular, pacífica e duradoura, entre dois povos tão distantes e diferentes nas suas mentalidades e modos de vida.

Em 13 de abril de 1987, como atrás salientei, os Primeiros Ministros de Portugal e da China, respetivamente Aníbal Cavaco Silva e Zhao Ziyang, assinaram uma Declaração Conjunta, a que foi atribuída, pelas partes contratantes, a força de um tratado internacional registado nas Nações Unidas, estabelecendo que a transferência de poderes para a China teria lugar às zero horas do dia 20 de dezembro de 1999 e que, até lá, haveria um período de transição de 12 anos, em que Portugal continuaria a administrar o território e a preparar a transferência.

A iniciativa partiu da China que, após ter aceitado pacificamente durante mais de 4 séculos um “status quo” em que Portugal manteve sem interrupções a responsabilidade pela governação de Macau, entendeu que, resolvida a questão de Hong Kong, tinha chegado finalmente o momento para o retorno daquele território à integridade da “Mãe-Pátria”, objetivo primordial da nação chinesa.

Permitam-me que aqui não deixe de evocar, por ocasião do 120.º aniversário do seu nascimento, em 22 de agosto do corrente ano, a grande figura que foi Deng Xiaoping, líder histórico, verdadeiro gigante da política da China.

Foi ele quem, através da sua visão e da sua liderança, depois dos anos negros da Revolução Cultural, deu o impulso decisivo para uma “segunda revolução” em sentido inverso, o da reforma e da abertura, que abriu o caminho para a grande transformação da China numa superpotência global, 2.ª economia mundial.

Foi ele que defendeu uma conciliação na China do socialismo e do capitalismo, criando as zonas económicas especiais, nomeadamente de Zhuhai e Shenzhen e prevendo o estabelecimento das regiões administrativas especiais de Hong Kong e de Macau.

Foi Deng Xiaoping quem visionou a fórmula “um país, dois sistemas” para a solução das questões, legadas pela História, de Hong Kong e de Macau, como via para a reunificação da Nação Chinesa, mantendo o seu importantíssimo papel de apoio à modernização e transformação da China.

Portugal entendeu, por seu lado, em toda a sua clarividência, que não devia obstaculizar as propostas chinesas. Pelo contrário, numa atitude realista e na plena consciência das circunstâncias, optou por aceitar que se procurasse uma solução para a questão de Macau baseada no diálogo e no entendimento construtivo entre os dois países.

A posição portuguesa teve nomeadamente em conta nunca Portugal ter tido uma soberania completa e perfeita sobre Macau, reconhecida como tal pela China e o facto de a população ser na sua esmagadora maioria chinesa. Assim, estabeleceu como objetivos a salvaguarda dos interesses da comunidade portuguesa de Macau e a garantia dos seus direitos e liberdades, a manutenção da estabilidade e da prosperidade do território e a continuidade do seu modo de vida, o reforço das relações entre Portugal e a China e a preservação do papel de Macau como elo de ligação entre os dois países. No fundo compreendemos bem que não nos podíamos opor ao curso inelutável da História e que se impunha uma boa colaboração com a China.

As negociações para a Declaração Conjunta decorreram num espírito amigável e construtivo e a transição decorreu de forma harmoniosa com a parte portuguesa assumindo todas as suas responsabilidades e a parte chinesa dando o seu apoio e colaboração.

Podemos dizer que os objetivos estratégicos fundamentais foram alcançados, quer por parte de Portugal, quer por parte da China, estabelecendo no caso desta última um novo patamar para a almejada reunificação da “Mãe-Pátria” com a integração de Taiwan.

Podemos aqui voltar a referir mais um facto extraordinário que merece ser realçado: que a China e Portugal se tenham entendido e que, através de um diálogo harmonioso, tenham conseguido, apesar de todas as diferenças, uma transferência de poderes em Macau, assegurando a autonomia do território e a sua singularidade, aceitando o carácter oficial da língua Portuguesa, salvaguardando o património histórico e cultural de Macau, a maneira de viver, as instituições existentes, nomeadamente o sistema legal e organização judiciária e os interesses da população, que continuou a fazer a sua vida normal mantendo o seu quotidiano, tranquilamente , pacificamente, convivendo entre si, sem problemas e tirando partido das novas oportunidades de desenvolvimento de uma sociedade moderna e que tudo tenha contribuído para o reforço das relações entre Portugal e a China.

Pela nossa parte, cumprimos o nosso papel histórico preservando a dignidade do nosso pais e assegurando uma transferência de poderes realizada com grande elevação num espírito de amizade e entendimento.

Podemos dizer que a Declaração Conjunta providencia um quadro adequado que tem provado bem na prática.

A Administração portuguesa nos 12 anos do período de transição desenvolveu com competência e eficiência uma ação notável no sentido de preparar o território em todos os aspetos da sua governação que dignificasse Portugal e garantisse uma continuidade na vida dos seus habitantes e das suas instituições.

Deixámos, em 20 de dezembro de 1999, um território com finanças sãs, com instituições operacionais e com excelentes infraestruturas que permitiram ao Governo da RAEM assumir, num quadro de estabilidade, as suas responsabilidades, numa situação confortável e prosseguir na senda do progresso.

25 anos após a transferência de poderes, Macau é hoje um território próspero com uma vida e autonomia próprias, com um desenvolvimento notável, que tem dado continuidade à herança recebida, honrando basicamente os termos da Declaração Conjunta. A vida em Macau continua a ser fácil e agradável, numa atmosfera de estabilidade.

A convivência entre as diferentes comunidades, nomeadamente com a portuguesa, processa-se com naturalidade e respeito mútuo.

As instituições têm funcionado dentro de uma normalidade e um elevado nível de eficiência.

Macau tem hoje um dos rendimentos “per capita” mais altos do mundo e é um território com um alto nível de desenvolvimento social.

Por outro lado, numa atitude de grande pragmatismo e visão utilitária, Pequim viu que Macau podia assumir uma significativa funcionalidade para os seus interesses estratégicos, com benefícios quer para a RAEM quer para a China, se preservasse a sua diversidade e especificidade e a sua vocação histórica e papel tradicional de entreposto.

A preservação do património arquitetónico e cultural com a atribuição pela UNESCO ao Centro Histórico de Macau do Estatuto de Património da Humanidade, a utilização de Macau para a difusão da língua portuguesa e para um ensino universitário de caráter internacional e focado nas tecnologias modernas e a criação do Fórum para a Cooperação Económica da China com os Países de Língua Portuguesa foram introduzidos como objetivos importantes da RAEM. De realçar igualmente o reconhecimento, pelo Governo da RAEM, do papel importante da comunidade portuguesa residente em Macau.

O contexto atual da RAEM abre perspetivas favoráveis para que os seus índices de desenvolvimento social e económico continuem a processar-se nos próximos 25 anos, num nível elevado, mantendo a estabilidade, reforçando a prosperidade e bem-estar da população e assegurando a continuidade das instituições existentes. Da mesma forma, as perspetivas são favoráveis a um estreito relacionamento, benéfico para ambas as partes, entre a RAEM e Portugal.

Para além de 2049, termo da vigência da Declaração Conjunta, o futuro estará nas mãos da República Popular da China e constituirá matéria que se insere exclusivamente no âmbito da sua soberania.

Tudo dependerá da prova do tempo e da realidade social, económica e política que então prevalecer na China, se bem que podemos antecipar que fatores como os desenvolvimentos em Hong Kong, a forma como evoluir a questão de Taiwan e o desenvolvimento económico das zonas de Zhuhai e Shenzhen e da própria província de Guangdong poderão, porventura, constituir fatores a serem tidos em consideração por Pequim.

Julgo que do ponto de vista económico poder-se-á antever uma certa integração gradual e progressiva da RAEM no espaço económico adjacente, que lhe proporcionará significativas vantagens.

Julgo, contudo, que a autonomia da RAEM, que está bem consolidada e a sua individualidade e diversidade em relação ao interior da China, serão naturalmente mantidas como ativos importantes e terão o beneplácito de Pequim, que reconhece o sucesso de Macau e tem interesse na estabilidade e no papel que a RAEM pode desempenhar em benefício da China.

Acentue-se que uma maior integração económica da RAEM com as áreas adjacentes, da mesma forma que a preservação da sua autonomia e diversidade, são fatores, todos eles compatíveis e conciliáveis, que trarão a Macau, estou certo, um futuro brilhante.

Conhecendo a sabedoria, o pragmatismo e o bom senso do povo chinês, não antecipo que haja uma mudança, em 2049, do sistema até então vigente em Macau.

 

II – Papel da Diplomacia no Processo de Transferência de Poderes

Memórias do Período de Transição

O período de transição iniciou-se com a troca dos instrumentos de ratificação que teve lugar em Beijing, em 15 de janeiro de 1988 e terminou em 19 de dezembro de 1999, data do termo da administração portuguesa e da transferência de poderes para a República Popular da China. Doze anos de importância crucial.

A partir da 1.ª referida data e durante o período de transição, a vida e a governação de Macau passaram a estar condicionadas por dois vetores: a administração do território pelo Governo de Macau que mantinha toda a sua plenitude e responsabilidades e o conteúdo da Declaração Conjunta, cuja aplicação efetiva deveria ser assegurada por um órgão, para tal instituído, o Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês (GLC) que deveria estabelecer as condições apropriadas para a transferência de poderes. A linguagem é da Declaração Conjunta.

Foi um trabalho gigantesco do Governo de Macau, que foi levado a cabo de forma exemplar, para a transformação do território preparando-o para o pós 1999 e preservando, ao mesmo tempo, a sua alma e identidade. No fundo a sua singularidade.

Por seu lado, o GLC foi, no contexto da nossa ação diplomática em que se integrou, uma peça fundamental, que permitiu que o período de transição decorresse na base de um diálogo construtivo e harmónico, assegurando uma continuidade para além de 1999, essencial para a consecução dos nossos propósitos e objetivos.

Foi para a chefia da parte portuguesa deste grupo e para Presidente da Comissão Interministerial sobre Macau que fui nomeado, no início de julho de 1989, ou seja, um mês depois dos acontecimentos de Tiananmen.

Permitam-me que vos deixe aqui, uma nota sobre os meus antecedentes pessoais que levaram à minha nomeação.

Fui convidado para as minhas novas funções pelo Ministro João de Deus Pinheiro, em abril de 1989.

O PM na altura era o Professor Cavaco Silva. O PR era o Dr. Mário Soares. O Governador de Macau era o Eng.º Melancia.

Tinha atrás de mim uma experiência, que me foi muito útil, adquirida nas minhas estadias em Macau e Hong Kong.

No MNE era caso raro.

Estive em Macau de 1970 a 1972, em serviço militar obrigatório, tendo exercido a advocacia durante estes dois anos.

O Governador era o General Nobre de Carvalho.

Fui colocado no Quartel-General, na 2.ª Repartição, das informações.

A advocacia deu-me oportunidade para uma grande diversidade de contatos com a população local, portuguesa e chinesa e de conviver de perto com os meus colegas do foro, alguns com posições políticas importantes como o Dr. Carlos Assunção e o Dr. Adolfo Jorge.

Macau vivia ainda as sequelas da crise de 1966, o chamado 123 por ter ocorrido a 3 de dezembro. Mas já tinha regressado à sua pacatez tradicional.

Acompanhei de perto a visita de Nixon em 1972 e os seus efeitos numa China, em que já se prenunciava alguma abertura.

Regressado a Lisboa ao MNE, tive durante um ano, na Direção Geral Política, o pelouro de Macau, tendo então elaborado um estudo, a pedido do Ministro Rui Patrício, sobre a titularidade jurídica de Portugal sobre Macau.

Como conclusão final, elegi um excerto do jornal chinês de Macau “Tai Chong”, de 18 de junho de 1971, e cito: “Sem dúvida, Hong Kong e Macau são partes integrantes da China e a sua recuperação, mais cedo ou mais tarde, depende da política da nossa Pátria. Assim, qualquer profecia ou conjetura a esse respeito é supérflua e pouco prática”. Fim de citação.

Palavras proféticas! 17 anos antes da assinatura da DC.

Voltei ao Oriente como Cônsul Geral em Hong Kong, onde cheguei em abril de 1979 e parti no final de dezembro de 1982.

Antes de partir para Hong Kong participei nos encontros preparatórios para a abertura da Embaixada de Portugal em Beijing, que teria lugar em 8 de fevereiro de 1979 e a que depois, enquanto em Hong Kong, dei apoio logístico e informativo.

Foi-me facultada nessa altura pelo Ministro Freitas Cruz, que tinha sido meu chefe em Bruxelas, durante 5 anos, a consulta do processo confidencial sobre os acontecimentos em Macau em 1966, guardado no gabinete do Diretor Geral Político.

Cheguei a Hong Kong pouco tempo depois da partida do General Garcia Leandro e apanhei como governadores de Macau o General Melo Egídio e o Almirante Almeida e Costa.

Hong Kong vivia um período de extraordinário desenvolvimento. Um “boom” sem precedentes.

No entanto, aproximava-se a data do termo da cessão dos Novos Territórios.

Sendo os arrendamentos feitos pela Coroa Britânica por 15 anos, a partir de 1982, faltaria a base legal para os prolongar ou conceder novos arrendamentos. A comunidade de negócios inquietava-se.

O Governador, Sir Murray MacLehose, visita Beijing em março de 1979 e propõe, cautelosamente, a Deng Xiaoping, que o Reino Unido possa proceder aos arrendamentos “for so long as the Crown administers the territory”.

Seria, por ironia do destino, a fórmula de Macau aplicada a Hong Kong: a permanência sem título, nem termo.

Deng Xiaoping recusa o pedido liminarmente, mas pede a Sir Murray que diga aos investidores de Hong Kong “to put their hearts at ease”, para não se inquietarem.

O papel de Hong Kong para a economia da China era demasiado importante, mas não o suficiente para que esta mudasse a sua posição em questões ligadas à sua soberania. No entanto, as condições de estabilidade e prosperidade seriam mantidas, assegurou.

Em setembro de 1982, a Sra. Thatcher visita Beijing e no encontro que teve com Deng Xiaoping, insiste que os 3 tratados (1842, 1860 e 1898), considerados pela China, como desiguais, iníquos e inválidos, deveriam ser considerados válidos dentro do princípio “pacta sunt servanta”.

Deng respondeu abruptamente dando a entender que, com ou sem negociações, a China recuperaria Hong Kong em 1 de julho de 1997.

Estava iniciado o processo de retrocessão de Hong Kong que arrastaria naturalmente o processo de retrocessão de Macau.

Como referi iniciei as minhas funções no GLC, em julho de 1989, permanecendo no lugar pouco mais de 3 anos, até setembro de 1992.

Substitui o Embaixador Simões Coelho que ocupou o lugar cerca de um ano.

Segundo a DC cada parte teria 5 membros. O Chefe seria um diplomata com o “rank” de Embaixador.

Os outros 4 membros eram, um designado pelo Presidente da República, inicialmente o Dr. António Vitorino, substituído mais tarde pela Engenheira Alexandra Costa Gomes, outro designado pelo Primeiro Ministro, o Dr. Henriques de Jesus e mais dois diplomatas, um sediado em Macau, como chefe da Base Principal do GLC, o Dr. João de Deus Ramos, mais tarde o Dr. Carlos Portela e outro, o n.º 2 da Embaixada de Portugal em Pequim, o Dr. Mário Godinho de Matos, mais tarde o Dr. Fernando Ramos Machado.

Todos foram excelentes colaboradores, devotados ao seu país, muito bem preparados e que me deram um apoio de grande qualidade.

Depois de mim o GLC ainda teve mais 3 chefes, os Embaixadores Anderson Guimarães, Jorge Rito e Santana Carlos.

Até à minha chegada, o GLC tinha-se limitado a discutir questões relacionadas com o estabelecimento da ordem de trabalhos, mais de ordem processual e de semântica do que de substância.

Estava então marcada uma reunião para 31 de julho em Macau.

Entretanto tinham tido lugar os acontecimentos trágicos de Tiananmen.

Propus superiormente que eu convidasse o meu homólogo chinês, Embaixador Kang Jimin, para uma reunião informal em Lisboa, para passarmos em revista a situação e decidirmos sobre o caminho a seguir.

Algumas palavras sobre o contexto histórico recente que levou ao início do processo de retrocessão de Macau.

Em primeiro lugar a atitude da China, que desencadeou os referidos processos depois de um longuíssimo período em que permitiu a continuidade de um “status quo” que, em relação a Macau durou 450 anos, e em relação a Hong Kong 155 anos.

Embora considerasse os 2 territórios partes integrantes da China, sempre se coibiu de impor o termo da sua administração por Portugal e a Grã-Bretanha.

Sublinhe-se que tudo na China obedece a um ritmo próprio, a uma reflexão e a uma ponderação evitando precipitações ou ligeirezas. Tudo é preparado e pesado cuidadosamente. Prós e contras. As situações são analisadas sob todos os seus aspetos, as capacidades próprias versus as capacidades de terceiros. As possíveis alianças e apoios. Os interesses da China a curto, médio e longo prazo. A confrontação é sempre um último recurso, depois de esgotadas todas as outras vias e na certeza de uma vitória.

É uma visão quase intemporal, em que o dia de hoje ou mesmo a geração presente, podem não ser os fatores decisivos.

Esta atitude está bem refletida quer na opinião de Mao Zedong* expressa numa conversa tida em outubro de 1975, com Kissinger, sobre a reintegração de Taiwan em que disse “eles podem esperar 100 anos”, quer na resposta dada por Deng Xiaoping** a um grupo de visitantes de Taiwan. E cito: “Se não pudermos reunificar a China já, [através da reintegração de Taiwan], fá-lo-emos dentro de um século; se não for dentro de um século, será dentro de um milénio”. Fim de citação.

(*https://china.usc.edu/analysis-secretary-kissingers-meeting-chairman-mao-october-21-1975

**Vogel, Ezra F. “Deng Xiaoping and The Transformation of China”, Cambridge, Harward University Press, 2011)

Macau e Hong Kong, com as suas diferentes cargas históricas e as diferenças de desenvolvimento, nunca deixaram de ter interesse e de representar uma mais valia para a China, que esperou pacientemente que as condições estivessem maduras para atuar na altura própria, mais favorável para os seus interesses.

Essas condições estavam finalmente alcançadas, no seu julgamento.

Mao tinha morrido em 1976. A Revolução Cultural tinha terminado. O Gang dos Quatro tinha sido neutralizado. Deng Xiaoping tinha emergido como líder supremo. Tinha avançado com uma política de reforma e abertura, virada decididamente para a modernização do país, que o haveria de conduzir à condição que hoje tem de superpotência.

Vivia-se um período de estabilidade. Respirava-se um sentimento generalizado de otimismo e prosperidade. A China sentia-se suficientemente forte para iniciar a caminhada para a reunificação.

Era necessário que todo o povo sentisse o orgulho de ser chinês.

A reunificação era uma aspiração do povo chinês, que iria pôr à prova a capacidade do país em conseguir concretizá-la.

Não por uma questão de ideologia ou de conveniência política.

Era sim uma questão de orgulho, de face, de honra, como nós, os ocidentais, a qualificaríamos.

O prestígio do país estava em jogo.

Deng descortinara a fórmula para uma solução que serviria na sua opinião os interesses de todos, mas sobretudo os interesses da China – “um país, dois sistemas”.

Inicialmente pensada para Taiwan, aplicar-se-ia como uma luva a Hong Kong e Macau.

Era imperativo manter a prosperidade e estabilidade dos dois territórios e preservar e promover de forma pragmática o seu papel na modernização e mudança da China, conciliando o capitalismo com o socialismo.

O sucesso dos 2 processos iria incentivar uma solução para Taiwan e sua reintegração na Mãe-Pátria, principal objetivo da China.

A China decidiu começar com Hong Kong. Para isso existiam razões ligadas à sua carga histórica, mas também razões práticas por os chineses não quererem que o caso de Macau desestabilizasse Hong Kong.

Havia por outro lado a Convenção de 1898 e o termo da cessão dos Novos Territórios em 1 de julho de 1997. Aproveitar-se-ia o ensejo para encontrar uma solução que estaria até em conformidade com um tratado cuja validade era defendida pelos Ingleses.

Tratado esse que a China considerava, tal como os outros, referentes a Hong Kong, desigual e iníquo e, portanto, inválido.

De qualquer maneira seria impossível separar os Novos Territórios que representam 92% do território de Hong Kong, deixando a parte remanescente isolada, sem qualquer viabilidade de sobrevivência.

Os ingleses insistiam na validade dos tratados e na procura de uma solução que permitisse a continuidade da administração britânica.

Ao contrário de Macau, o processo de Hong Kong começou com uma divergência fundamental das duas partes sobre a questão da soberania.

A posição da China acabou por prevalecer.

Foi uma negociação dura e tensa, com 2 fases distintas, a primeira que se reduziu a um braço de ferro sobre a validade dos tratados.

No conjunto, tiveram lugar 27 rondas em que os britânicos, depois de aceitarem a inevitabilidade da retrocessão, se esforçaram para que a parte chinesa, que inicialmente tinha proposto uma DC curta e simples, aceitasse um conjunto de princípios e regras, fixando as políticas a serem seguidas na futura RAEHK, com vista a garantirem a continuidade das instituições vigentes.

A DC foi redigida com clareza e precisão, característica dos anglo-saxónicos, numa linguagem legal apropriada, estabelecendo um quadro vinculatório minucioso.

O GLC correspondeu a uma exigência da parte chinesa que entendia que devia ser um órgão de supervisão e controlo e que a parte britânica procurou a todo o custo contrariar, tendo conseguido que acabasse por ser apenas um órgão de mera consulta, que nunca mereceu, aliás, o favor dos britânicos. Diga-se, de passagem, que o mesmo sucedeu “mutatis mutandis” com o GLC Sino Português.

Atente-se ao facto de que a maior parte das publicações sobre Macau não fazem normalmente sequer referência ou fazem apenas uma breve referência ao GLC.

Pessoalmente vivi e vivo bem com isso. A diplomacia portuguesa, talvez não tão bem.

Quanto a Macau, os dados já estavam em cima da mesa. Quer a Constituição de 1976, quer os termos do Acordo de 1979, para o restabelecimento de relações diplomáticas, aceitavam claramente a posição de que Macau era um território sob administração de Portugal, que detinha, pois, não a soberania, mas apenas o seu exercício.

A instabilidade e incertezas que se seguiram ao 25 de abril tinham-se dissipado, da mesma forma que a influência do partido comunista obediente a Moscovo.

Tínhamos, por outro lado, avançado com a descolonização das nossas colónias em África.

Ao contrário de Hong Kong, as posições convergentes e a conjugação de vontades das duas partes, facilitaram as negociações para a DC, que tiveram apenas 4 rondas, e, mais tarde, uma transição harmoniosa e construtiva.

Embora tivéssemos justificadamente sublinhado as diferenças profundas entre Hong Kong e Macau e a necessidade de olhar para o caso de Macau numa perspetiva autónoma, o que jogou a nosso favor do ponto de vista negocial, o certo é que beneficiámos do trabalho feito em relação a Hong Kong, que facilitou a nossa tarefa. Ficámos a dever isso aos Ingleses.

Vejamos agora como funcionou o GLC e quais os principais problemas, com que teve que se debater.

Cheguei a Lisboa nos primeiros dias de julho de 1989, cheio de entusiasmo e vontade de deixar uma marca pessoal num processo de importância histórica. Era a minha única ambição.

O meu gabinete no Palácio das Necessidades era o quarto da Rainha, magnífico, que tinha sido o gabinete do Caeiro da Mata e de Salazar durante o período em que este foi MNE.  A secretária em que eu ia trabalhar tinha sido a de Salazar quando se deslocava às Necessidades para despacho.

Eu iria mover-me entre Lisboa e Macau, onde tinha igualmente um gabinete designado por Base Principal do GLC.

Enfim, estava altamente motivado e, posso dizer, feliz com a oportunidade que me era dada.

O meu primeiro encontro com o Eng.º Melancia, então Governador de Macau, que se encontrava em Lisboa, foi, contudo, acompanhado de um episódio caricato que não resisto a contar-vos.

O Eng.º Melancia tinha agendado um encontro com o Ministro João de Deus Pinheiro.  Porque eu ainda não tinha sido nomeado e não estava oficialmente em funções, ele seria acompanhado pelo Embaixador Simões Coelho, meu predecessor.

Encontrava-me, contudo, nas Necessidades, onde já tinha começado a trabalhar nos dossiers de Macau.

No momento em que foi anunciada a chegada do Eng.º Melancia eu estava exatamente a bater à porta do Chefe de Gabinete do Ministro, que ficava no corredor que dava acesso ao Gabinete do Ministro, esperando uma resposta para poder entrar.

Aparece-me o Simões Coelho que ia esperar o Eng.º Melancia no cimo das escadarias para o levar ao Gabinete do Ministro e diz-me. “Pedro, esconda-se, vem aí o Melancia”. Entretanto recebo indicação para entrar e desapareço do corredor, não chegando a ver ou a ser visto pelo Eng.º Melancia. Devo dizer que fiquei confuso. Parecia estarmos a jogar ao gato e ao rato.

No dia seguinte recebo um telefonema do Eng.º Melancia que tinha ficado admirado de eu não estar na audiência. Eu deveria ser o seu natural interlocutor e a ponte entre ele e o Ministro.  Disse que gostaria de falar comigo e pediu-me para o ir ver no dia seguinte.

Expliquei-lhe que ainda não estava oficialmente em funções e que tinha naturalmente muito prazer e interesse em falar com ele.

Pedi o conselho ao meu adjunto, Dr. João de Deus Ramos, que já vinha há algum tempo acompanhando os trabalhos do GLC e era o chefe da Base Principal em Macau, que me disse: “Não deixe de dar conhecimento e pedir a luz verde ao Ministro; tudo isto é muito delicado, para não dizer explosivo”, o que correspondia aos comentários do Simões Coelho sobre o decorrer do processo.

Lá fui falar com o Dr. João de Deus Pinheiro que achou naturalmente bem e não pôs, evidentemente, qualquer objeção, uma vez que a minha nomeação estava iminente.

Entretanto alguém com responsabilidades políticas e uma posição elevada diz-me, talvez irrefletidamente, penso eu em seu benefício: “Pedro, o que se espera de ti é que mantenhas os chineses entretidos com as vossas conversas”.

Fiquei embasbacado.

Vi que havia um problema que tinha que ser, desde logo, encarado e resolvido e que embora estivesse acima da minha cabeça e do meu “pay roll” como dizem os americanos, eu deveria fazer tudo o que pudesse para que não viesse a prejudicar o processo em curso.

Era absolutamente fundamental que houvesse unidade de ação, sem qualquer brecha ou dissensão e um bom entendimento e conjugação de esforços baseada numa informação efetiva, completa e rigorosa, disponibilizada a todos os intervenientes, sem qualquer subterfúgio, nas esferas políticas mais elevadas ou seja, Presidente da República, Primeiro-Ministro, Ministro dos Negócios Estrangeiros e Governador de Macau.

Lembremo-nos que era o Presidente da República que tutelava o Governador de Macau e a sua ação e que era o Primeiro Ministro que tinha a responsabilidade da condução da política externa, através do Ministro dos Negócios Estrangeiros, de quem eu recebia as orientações políticas e perante quem respondia orgânica e hierarquicamente.

Acentue-se ainda que o Governo de Macau não estava representado no GLC por imposição chinesa.

Lembremo-nos do incidente em Beijing com o Governador de Hong Kong, Sir Edward Youde, ainda no início das negociações, respondendo a uma pergunta de um jornalista, sobre quem ele representava. Na sua resposta Sir Edward retorquiu que representava os interesses de Hong Kong e da sua população.

Esta resposta suscitou uma violenta reação por parte da China que se arrogou o direito de representar a população de Hong Kong, na sua maioria chinesa.

Lembremo-nos também da posição chinesa de que o processo de Hong Kong e Macau nada tinham a ver com a autodeterminação dos 2 territórios, apenas com a sua retrocessão à “Mãe-Pátria” chinesa. Os 2 processos não podiam ser considerados como processos de descolonização. O que estava em causa era não a sua independência, mas a sua reintegração na China.

Note-se os termos da carta dirigida, em 8 de março de 1972, pelo Representante Permanente da RPC após a acessão ao lugar da China nas Nações Unidas ao Presidente do Comité Especial sobre Descolonização, exigindo a retirada de Hong Kong e Macau da categoria de territórios coloniais de todos os documentos das Nações Unidas por constituírem matérias do foro interno da China.

E cito “Hong Kong e Macau fazem parte do território chinês ocupado pelas autoridades britânicas e portuguesas”.

Devo, contudo, esclarecer que nada se fazia no GLC sem uma consulta prévia com o Governador.

Por outro lado, uma grande parte do trabalho do GLC era baseada na colaboração com peritos da Administração de Macau que davam um apoio e contribuição permanente e indispensável ao GLC.

A relação do GLC com o Governador e a Administração de Macau foi sempre no meu tempo estreita e correta, cobrindo integralmente todos os assuntos tratados e sempre funcionou impecavelmente.

O processo de Macau era um projeto nacional e um assunto de importância fundamental, histórica e todas as diferenças políticas ou pessoais deveriam desaparecer, prevalecendo uma vontade comum de servir o interesse nacional.

Estava, pois, determinado a utilizar por todos os meios, compatíveis é claro com as minhas obrigações profissionais de lealdade e reserva, as minhas funções para permitir e facilitar uma interação dos intervenientes políticos que permitisse a unidade de propósitos e ação que se impunham.

Os meus colegas e amigos, Embaixadores Nunes Barata e Martins da Cruz, colocados respetivamente nos Gabinetes do PR e do PM, muito me ajudaram na minha tarefa.

Estabeleci com os 2 uma relação de trabalho direta enviando-lhes a informação adequada com a indicação expressa “for your eyes only”.

Nem sempre respeitada, devo dizer. Com a minha compreensão, devo acrescentar.

Tudo se passou bem, ultrapassando alguns momentos de tensão e algumas situações que poderiam complicar as coisas.

Refiro duas destas situações.

Uma, foi a nomeação do Dr. João de Deus Ramos para Secretário Adjunto para a Transição pelo Governador Melancia.  Foi feita sem eu ter sido consultado, não tinha que ser, ou sequer informado previamente.

A situação durou pouco tempo com a exoneração do Eng.º Melancia devido a um processo judicial.

Fui sempre contra tal nomeação.  Além do desmembramento do GLC numa altura em que precisávamos de todos os recursos humanos, criava uma situação que dava aso à tentação de uma diplomacia paralela, que poderia originar problemas graves perante a parte chinesa, enfraquecer a nossa posição negocial e quebrar a unidade de ação fundamental para a defesa dos nossos interesses.

Tal nunca chegou a suceder, mas requereu algumas conversas com o Eng.º Melancia, sempre corretas e amigáveis, devo esclarecer.

Felizmente que o General Rocha Vieira quando assumiu as funções de governador optou por não manter um Secretário Adjunto para a Transição e o lugar foi suprimido.

A segunda situação foi um problema que surgiu relativamente às concessões de terras, que constituiu, a meu ver, uma verdadeira “prova de fogo” para o novo Governador que iria em breve chegar.

A DC reconhecia a responsabilidade própria do Governo de Macau de celebrar contratos de concessão de terras dentro do limite de 20 hectares por ano, devendo os rendimentos obtidos ser repartidos em partes iguais entre o Governo de Macau e o futuro Governo da RAEM, neste último caso a ser convertido num Fundo de Reserva. A partir do referido limite os contratos necessitavam da aprovação do Grupo de Terras.

O plano de concessão de terras tinha de ser anualmente entregue até ao fim do ano. Em 1989 e 1990, os planos foram entregues próximo do fim do prazo, o que tinha causado uma corrida contrarrelógio para ter tudo aprovado em tempo útil.

Em 1991, o plano ficou pronto, salvo erro, em março ou abril e feitas promessas de alienação com base em concurso por carta fechada de 7 lotes de terreno numa zona do Porto Exterior de alto valor.

Os chineses protestaram por não estarem de acordo com o valor atribuído aos referidos lotes, bastante abaixo do preço de mercado, advogando que a alienação deveria ser por hasta pública e ameaçando anular as vendas após a transferência de poderes em 1999.

Iniciou-se então um braço de ferro com o Governo de Macau, numa altura em que o Encarregado do Governo era o Dr. Murteira Nabo, que alegava que era ele que tinha competência para decidir a quem e como devia vender e os chineses a sentirem-se lesados quanto aos montantes que lhes eram devidos.

O Dr. Murteira Nabo e o Eng.º Vasconcelos, Secretário Adjunto para as Obras Públicas, decidiram deslocar-se a Lisboa, para falarem com o Ministro João de Deus Pinheiro, junto de quem defenderam que a decisão do Governo devia prevalecer e que por uma questão de prestígio e de face não deveria ser alterada.

Inquirido sobre a minha opinião, retorqui que a posição do Governo de Macau era formalmente correta, mas que devíamos ter em conta a possível reação chinesa quanto à anulação dos contratos. Exprimi as minhas dúvidas quanto aos concursos por carta fechada, que permitiam arranjos que favoreciam os interessados, mas não os interesses do Governo de Macau e a pressa posta numa resolução do caso. Era difícil para mim perceber as razões.

Na base, porém, das justificações dadas pelo Dr. Murteira Nabo e Eng.º Vasconcelos, o Ministro João de Deus Pinheiro deu instruções para aceitarmos a decisão que fosse tomada pelo Governo de Macau.

As promessas de venda, duas das quais ao Dr. Stanley Ho e as outras 5 a magnatas de Hong Kong foram confirmadas.

O Governador Rocha Vieira, recém-chegado ao território, depois de cuidadosamente pesar todos os aspetos da questão, que conta pormenorizadamente e de uma forma clara no livro “Todos os Portos a que Cheguei”, encontrou uma forma hábil que salvaguardava o princípio da competência do Governo de Macau em relação às concessões de terras atribuídas dentro do limite de 20 hectares estabelecidos na DC e a sua liberdade de decisão dependente do seu próprio julgamento.

Nesta linha, entendeu anular as vendas, uma vez que as concessões não estavam formalizadas, faltando o parecer obrigatório do Conselho Consultivo e optar pela hasta pública, o que sucedeu após a prévia aprovação dos planos pela parte chinesa ficando assim clara a capacidade de decisão e independência do novo Governador.

Os lotes de terreno foram depois vendidos a diferentes compradores (instituições chinesas do interior da China que tinham passado a poder investir em Macau) que não os originais, tendo os preços alcançados atingido uma soma 6 vezes superior, em centenas de milhões de patacas, aos preços originalmente aprazados.

Tal possibilitou, nomeadamente, o reembolso ao Fundo de Reserva da futura RAEM de montantes em dívida e o financiamento do aeroporto.

Os principais beneficiados foram o Governo de Macau que passaria a dispor de receitas substancialmente mais elevadas e o Fundo de Reserva do futuro Governo da RAEM.

A vantagem maior, do meu ponto de vista, foi ter-se evitado um grave desacordo com a parte chinesa e uma tensão que poderia envenenar o processo de transição.

A solução encontrada e a forma como o assunto foi tratado veio fortalecer a relação de confiança política mútua entre os chineses e o Governador Rocha Vieira, que se projetou na sua futura ação durante todo o período de transição, chave para o sucesso da governação.

Outra questão que esteve sempre presente nos trabalhos do GLC, foi a afirmação das competências do Governador de Macau e a salvaguarda do respetivo espaço para o seu pleno exercício.

A DC estipulava que a administração de Macau até à transferência de poderes, em 1999, constituía uma responsabilidade do Governo da República Portuguesa, que deveria continuar a procurar o desenvolvimento económico e a preservar a estabilidade social de Macau e que o Governo da RPC deveria dar a sua cooperação nesse sentido.

O GLC, segundo a DC, seria um órgão de ligação, consulta e troca de informações entre os dois governos. Não deveria interferir na administração de Macau, nem desempenhar qualquer supervisão sobre a mesma administração.

Não deveria, pois, assumir-se como órgão de poder.

A DC declarava igualmente que a instituição do GLC visava assegurar a aplicação efetiva da DC e criar as condições apropriadas para a transferência de poderes, em 1999.

Assumi, como objetivo fundamental, assegurar a liberdade de ação do Governo de Macau, preservando o espaço para que tal pudesse acontecer, sem interferência nem obstáculos pela parte chinesa.

Ao mesmo tempo, procurei sempre encorajar a cooperação chinesa para que tudo o que fosse feito pelo Governo de Macau pudesse ter a continuidade desejável para além de 1999.

Foi um equilíbrio, nem sempre fácil e uma questão que não foi meramente teórica e tinha um cunho político de grande relevância. Permaneceu sempre no decurso dos trabalhos do GLC.

A parte chinesa insistia que deveria ser consultada sobre todas as questões que tivessem um impacto pós 99, o que incluía praticamente tudo e que o seu acordo era condição para que as nossas decisões pudessem ter aplicabilidade após a transferência de poderes.

Para evitar situações de conflito foi necessária uma grande disciplina, espírito de compromisso e isenção, na enorme tarefa do Governo de Macau, que, devo dizer, foi desempenhada exemplarmente em todo o período de transição, mas que requereu também, consideráveis esforços do GLC para, com tato, compreensão pelas sensibilidades chinesas, mas também uma firmeza delicada, para que fosse deixado intocável e fosse salvaguardado o princípio da nossa competência e, a sua aceitação, exigidos pela nossa dignidade e sentido de responsabilidade que não podiam ser postos em causa.

Não podia ser de outra maneira. A administração era portuguesa e até à transferência de poderes tinha que se manter como tal.

Esta foi talvez a questão de maior importância do período de transição e que felizmente foi dirimida com notável sucesso.

Para que tal acontecesse, o Governo de Macau providenciou sempre, para que fosse fornecido ao GLC o máximo de informações relativamente à implementação das decisões tomadas, assegurando ao mesmo tempo que todo o processo de decisão fosse caracterizado por uma transparência e isenção absolutas.

Outra questão que apresentava para nós especial delicadeza, mas ao mesmo tempo uma oportunidade para valorizarmos as nossas posições, foi o impacto dos acontecimentos de Tiananmen ocorridos poucos dias antes de eu ter assumido as minhas funções.

Os ingleses tinham suspendido os trabalhos do GLC Sino Britânico e a CEE, a que já tínhamos aderido, tinha tomado um conjunto de medidas afetando as relações com a China. A população de Hong Kong tinha saído à rua para se manifestar contra a repressão exercida pelas autoridades chinesas.

Portugal decidiu, contudo, ponderada a situação, que o caso de Macau era diferente e que o congelamento do diálogo com a China iria afetar gravemente o desenvolvimento do território e os interesses da população. Não poderíamos perder tempo que era escasso para a tarefa à nossa frente.

A alternativa seria a estagnação de Macau, a erosão da confiança da população e o envenenamento do processo de transição.

Acordámos, pois, prosseguir o diálogo no GLC.

Foi uma decisão delicada, bem apreciada pela China e que teve como efeito imediato que a parte chinesa desse a indispensável luz verde à concessão de terrenos, cerca de 200 hectares, a serem aliás conquistados ao mar, para o aeroporto de Macau, possibilitando a materialização deste grande projeto, tão importante para a autonomia e desenvolvimento do território.

Com efeito, na reunião informal que tive, uns dias apenas após ter iniciado as minhas funções, o meu homólogo chinês depois de ter ouvido uma longa exposição que fiz sobre o impacto dos acontecimentos de Tiananmen, diz-me que, no caso de decidirmos a não suspensão dos trabalhos do GLC, que eu tinha propositadamente evitado referir por razões táticas, a parte chinesa estaria disposta a aprovar a concessão dos terrenos para o aeroporto.

Foi o que eu queria ouvir.

Interrompi a reunião.

Falei imediatamente com o Ministro João de Deus Pinheiro.

Enviei o meu adjunto, João de Deus Ramos, Chefe do Grupo de Terras, no dia seguinte para Macau, para assinar uma ata de conversa a formalizar o acordo prometido pela parte chinesa.

Foi um bom começo do exercício do meu cargo e uma boa contribuição para o trabalho do Governo de Macau que, mais tarde, foi conseguindo superar todos os obstáculos postos pelos chineses, sobretudo quando queriam obter ganho de causa noutras matérias, que não foram poucos, para definitivamente concluir o projeto do aeroporto, que foi inaugurado em 1995, durante o mandato do Governador Rocha Vieira.

Neste contexto, a reunião do GLC marcada para 31 de julho, em Macau, foi confirmada, vindo a realizar-se em Lisboa, para evitar manifestações de grupos vindos de Hong Kong, e tivemos uma reunião produtiva em que, nomeadamente, avançámos com a Lei de Bases do Sistema Judiciário de Macau com a valiosa ajuda profissional de altíssima qualidade do Dr. António Vitorino.

Muito sucintamente vou dar-vos conta do funcionamento do GLC e dos principais resultados do seu labor.

As negociações que precederam a assinatura da DC foram dominadas por dois problemas principais.

Um, ficou resolvido, o da data da retrocessão.

O outro, o da nacionalidade, ficou pendente, com a afirmação das posições portuguesa e chinesa, em dois memorandos, tendo mais tarde sido acordado que se aplicariam de forma pragmática, superando a inconciliabilidade das leis dos 2 países.

Vejamos como decorreram os trabalhos do GLC.

Realizaram-se no período de transição 36 reuniões plenárias, alternadamente em Beijing, Lisboa e Macau.

Estas reuniões tinham uma parte formal e uma parte informal.

A parte formal, com a duração de dois dias, punha as duas delegações frente a frente, com uma ordem de trabalhos previamente acordada, com a participação de todos os titulares do GLC e um bom número de peritos.

Só quem falava eram os chefes, em português e chinês, com tradução consecutiva.

No fim emitia-se um comunicado final.

À parte formal seguia-se uma parte informal, também de dois dias, integrada em visitas turísticas, cuidadosamente organizadas pela parte anfitriã, em que os membros das duas delegações procediam a consultas num ambiente de grande descontração e, devo acrescentar, de grande animação.

Canções, anedotas, tudo servia para criar uma atmosfera propícia à aproximação das duas delegações, que tinham assim oportunidade de se conhecer melhor e tentarem, muitas vezes, resolver alguns dos problemas mais delicados.

Tenho muitas histórias deliciosas que, se pudesse alargar-me, vos poderia contar. Foi uma convivência extraordinária.

O GLC abordava na sua atividade toda uma panóplia de assuntos relacionados com praticamente todos os aspetos da administração do território, tudo observado à lupa pela parte chinesa.

Nós informávamos, eles tomavam nota.

O meu homólogo chinês, Embaixador Kang Jimin, costumava dizer que Macau era como um passarinho, tinha tudo.

A parte chinesa estava naturalmente mais focada no ordenamento administrativo adequado da futura RAEM.

As questões mais relevantes para ela eram as relacionadas com as designadas 3 grandes questões: a questão da oficialização e utilização da língua chinesa, a localização dos quadros da administração pública e a adaptação e tradução das leis. No caso de Macau, ao contrário de Hong Kong, havia quase tudo por fazer.

Só quando os chineses tiveram a perceção de que os principais problemas estavam resolvidos, se abriram para a solução de outras questões relevantes, como a construção do aeroporto internacional de Macau, a entrada de Macau em organizações internacionais e a nacionalidade dos residentes em Macau.

Relativamente às grandes questões, a de maior importância e prioridade para a parte chinesa, foi a oficialização da língua chinesa.

A língua portuguesa era a única língua oficial de Macau e os chineses queriam, naturalmente, que o chinês fosse também oficializado, o que era considerado pressuposto para as duas outras questões poderem avançar.

Resisti sempre, por razões táticas, à resolução da questão que se foi avolumando.

O Governador Melancia chegou a sugerir uma visita do Presidente Mário Soares à China para resolver o problema.

Manifestei opinião em contrário: que era cedo para uma visita do Dr. Soares, tendo em conta o embargo da CEE, que a sua visita devia ser precedida por uma visita do Governador e que eu estava convencido e pressentia, posso dizê-lo, que a questão da língua, seria resolvida no âmbito do GLC, conseguindo a contrapartida que desejávamos e que era a declaração do português como língua oficial na RAEM, o que as negociações para a DC não tinham conseguido.

Ao fim de muitas conversas e perante as minhas continuadas reticências, o meu homólogo, Embaixador Kang Jimin, finalmente declarou-me, numa conversa “informal” a sós, a disposição chinesa de aceitar incluir na Lei Básica uma cláusula, o artigo 9.º, admitindo o português como língua oficial da RAEM, no caso, é claro, que declarássemos, desde logo, o chinês como língua oficial em Macau.

Para nós foi um passo gigante, de importância histórica, com um significado transcendente e com efeitos práticos muito significativos, nomeadamente para assegurar a singularidade de Macau.

Macau não seria o que é hoje, sem o português como língua oficial.

O processo de transição foi, por seu lado, facilitado e clarificado com a oficialização do chinês.

O entendimento foi formalizado num protocolo, que eu próprio preparei, assinado pelos Ministros João de Deus Pinheiro e Qian Qichen, numa visita deste último a Lisboa, em fevereiro de 1991.

O Governo Português aprovou o Decreto-Lei n.º 455/91 que foi publicado no Diário da República, em 31 de dezembro e, em 3 de janeiro de 1992, já com Rocha Vieira em Macau, publicado no Boletim Oficial.

O entendimento com Macau foi perfeito.

O assunto está igualmente muito bem explicado pelo Embaixador Kang Jimin, chefe da parte chinesa do GLC, num artigo intitulado “O Caminho de Retorno de Macau à Mãe Pátria”, publicado em 2003, na Revista Administração (n.º 60, vol.: XVI, 2003 – 2.º, 539 – 546).

Com o problema da língua resolvido, pudemos avançar com a adaptação e tradução das leis, uma tarefa enorme realizada por um conjunto de brilhantes juristas ao serviço do Governo de Macau.

Entre estes jovens juristas, destaco entre outros, o Dr. Jorge Oliveira, o Dr. Eduardo Cabrita e o Dr. Pedro Siza Vieira, que mais tarde haviam de desempenhar importantes funções políticas. Todos da “gaveta de cima”.

Foi um dos legados mais importantes que deixámos em Macau – o Direito de matriz portuguesa. Que por um lado molda a vida e instituições da RAEM e que, por outro lado, nos permite ter na Região uma massa crítica, com uma influência notável e com um papel potencial de grande relevância para os interesses portugueses.

Devo dizer que os Códigos foram todos traduzidos para chinês, mantendo o Código Penal a proibição da aplicação das penas de morte, prisão perpétua e detenção por tempo indeterminado.

Ainda tentei que a Lei Básica incluísse disposições idênticas e desloquei-me a Beijing com esse propósito, mas nada consegui.

Finalmente a localização de quadros decorreu de forma eficiente, com uma gradual restruturação da administração pública, formação intensiva de quadros médios e superiores e reconhecimento das habilitações literárias concedidas pelas universidades chinesas. Alguns portugueses permaneceram em posições que não estivessem reservadas aos cidadãos chineses.

Tudo fizemos no GLC para que a noção e regime dos residentes permanentes tivesse uma posição proeminente na Lei Básica, mas apenas tivemos resultados mitigados.

Quanto à parte portuguesa, a nossa atenção foi particularmente focada na obtenção de garantias mais substantivas quanto aos princípios enunciados na DC relativamente à autonomia, aos direitos fundamentais, à singularidade de Macau, à preservação da língua e património cultural e à proteção dos interesses dos habitantes de ascendência portuguesa.

Era importante, da mesma forma, que o “2.º sistema” funcionasse bem no quadro da separação dos poderes executivo, legislativo e judicial e no da independência deste último que, segundo a DC, admite a possibilidade de recurso até à última instância.

Quanto à proteção dos direitos fundamentais, foi particularmente importante o termos conseguido, com um incisivo impulso do Governador Rocha Vieira, a extensão da aplicabilidade dos Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, que ficou consagrada em ata negociada no GLC e incluída na Lei Básica – artigo 40.º.

Foi uma vitória notável e um compromisso de importância capital que a DC não tinha consagrado, ao contrário da DC Sino Britânica.

Mais uma vez a relevância do GLC ficou comprovada.

Para além dos aspetos citados, o GLC ocupou-se também da internacionalização de Macau através da sua participação num número de organizações internacionais, nomeadamente da OMC (nessa altura ainda GATT), OMT/UNWTO, UNESCO, IMO, ESCAP, INTERPOL, IATA, etc.

De particular relevo a adesão de Macau ao então GATT, até pelo papel decisivo da parte portuguesa.

Foi um processo difícil.

Sem a nossa intervenção, facilitada pelo facto do então Diretor Geral do GATT, Sr. Dunkel, de nacionalidade suiça, junto de quem defendi a nossa posição, ser um grande amigo de Portugal, onde passara a sua juventude, dominando perfeitamente o português, Macau não se teria possivelmente tornado membro da organização. Os EUA não viam com bons olhos que a China, que só se tornou membro da OMC em 2001, viesse a ter, como sucedeu, 3 delegações e 3 votos na organização.

Muitos outros assuntos foram tratados no GLC no meu tempo e depois do meu tempo.

Assuntos como a classificação pela UNESCO do Centro Histórico de Macau como Património da Humanidade e a definição dos limites das águas territoriais, que a parte portuguesa levantou, foram deixados cair, dada a oposição da China por os considerar assuntos que caiam na esfera da soberania chinesa e deverem ser tratados, como foi o caso da UNESCO, depois da transferência de poderes.

O problema da Fundação Oriente levantado pela parte chinesa foi objeto de longas conversas no GLC.

Sempre defendemos que era um assunto da esfera privada.

Chegou-se a um entendimento satisfatório e que preenchia as condições das duas partes.

Uma última referência a um problema delicado que surgiu na fase final do período de transição de Macau e em que tive intervenção na minha qualidade já de Embaixador de Portugal em Pequim, onde estava colocado na altura.

Ao contrário da DC Sino Britânica em relação a Hong Kong, a DC Sino Portuguesa não faz menção do estacionamento de forças armadas chinesas no território de Macau.

No entanto, a China entendeu, que tendo a responsabilidade pela defesa da RAEM, seria uma consequência natural que ela, detentora da soberania do território, pudesse decidir ter em Macau um destacamento das suas forças.

Portugal não contestou tal asserção, mas defendeu que enquanto Macau permanecesse sob administração portuguesa, não seria admissível uma presença militar chinesa e que as suas forças armadas não deveriam entrar na RAEM, com grande aparato e pela calada da noite, como acontecera em Hong Kong.

Foi uma negociação difícil, um braço de ferro, tendo Lisboa decidido que o assunto deveria ser discutido, não no GLC, por não constar da DC, mas bilateralmente pelas capitais dos dois países. Exigiu da nossa parte constância e firmeza, nomeadamente, nas múltiplas diligências que, com base nas instruções recebidas, tive de efetuar no Ministério dos Negócios Estrangeiros e no Conselho de Estado da RPC.

A questão só se resolveu durante a visita oficial a Portugal do Presidente Jiang Zemin, que, perante a perspetiva da não participação do Presidente Sampaio na cerimónia de transferência de poderes, acabou por conceder que só um reduzido destacamento e só ao meio-dia, de 20 de dezembro, com o sol bem alto, é que entraria em Macau.

Assisti pessoalmente, como espectador anónimo, a essa entrada em Macau de uns tantos veículos militares, camiões de caixa aberta, com uma tropa, com aparência pouco marcial e nada guerreira ou belicosa, com a população aplaudindo à sua passagem com bandeirinhas da República Popular da China, em ar de festa e em grande jubilo, num dia de sol radioso.

Era o Mundo em mudança, uma nova era que se abria a Macau, que me deixou, devo dizer, um sentimento de alguma nostálgica e resignada tristeza.

Era todo um longo passado, um muito longo passado, que ficava para a História, mas de que nos podíamos orgulhar, como portugueses.

Restava-nos a esperança de que o futuro venha a ser nos próximos 450 anos de paz e prosperidade para os habitantes de Macau, numa convivência pautada pelo respeito e aceitação mútua.

 

Considerações Finais

A minha participação no processo de Macau foi para mim um privilégio, mas também uma experiência fantástica e inolvidável.

Ter a oportunidade de durante três anos debater com a parte chinesa a questão do futuro de Macau, sentir o choque de sensibilidades, de quadros mentais, de culturas e de filosofias de vida tão diferentes, procurando encontrar um terreno comum, conciliando conceitos e atitudes perante a vida, tentando harmonizar a visão confuciana, terra-a-terra, empírica e pragmática com a filosofia judaico-cristã temperada por uma lógica cartesiana, constituiu para mim um desafio intelectual e um enriquecimento humano sem medida.

Negociar com um país da dimensão da China, por outro lado, é quase como uma formiga negociar com um elefante.

Quantas vezes ouvi o argumento de que uma certa posição iria ferir o sentimento de 1,3 mil milhões de chineses, a que eu respondia sem grande esperança de ser entendido, que a dignidade humana não se mede pelo número da população, mas pelo respeito devido a cada um dos seres humanos na sua individualidade.

Mas a assimetria não era a razão última de que dependia o resultado das negociações, uma vez que a China queria e precisava do sucesso das mesmas.

Queria o entendimento, não o esmagamento da parte contrária.

Queria o consenso, a harmonia, a unanimidade.

Queria o acordo pacificamente aceite.

Para a China tudo se podia negociar, menos questões de soberania.

Pondo de parte a vertente filosófica, foram negociações duras e complexas.

Os chineses são muito hierarquizados e minuciosos. O processo de tomada de decisão é sujeito a uma apreciação dos assuntos em patamares sucessivos.

Tudo era sujeito a uma dúvida metódica e ao crivo de uma análise sistemática.

Tudo devia ser objeto de regateio, de barganha.

Nada se dá, sem se pedir alguma coisa em troca.

As palavras usadas são sempre muito importantes, o que exige uma enorme contenção e disciplina.

O Dr. Stanley Ho disse-me uma vez que negociar com os chineses era como jogar “poker”.

Era preciso conhecê-los bem e à sua mentalidade, procurando adivinhar os seus pensamentos para se saber quando se deve ir a jogo ou quando nos devemos retirar.

Era uma questão de intuição, adquirida com a experiência e o conhecimento mútuo, que só com o tempo e com os contatos humanos se adquire.

Para os chineses as principais qualidades requeridas a um negociador são a cortesia, a paciência e o respeito mútuo. Imperativo é não causar, à parte contrária, uma perda de face.

Macau constituiu um exemplo para o Mundo de como as questões mais delicadas, como são as questões de soberania, envolvendo o futuro de uma população, podem ser resolvidas através do diálogo e de um entendimento amigável, com base numa boa compreensão das diferenças e complementaridades.

Deixámos um território com excelentes infraestruturas, com instituições operacionais e com finanças sãs.

Os objetivos fundamentais da China foram conseguidos: a reintegração de Macau na China, feita em paz e através de diálogo, a entrega da sua administração aos chineses de Macau, com um alto grau de autonomia, a manutenção da prosperidade e estabilidade e a resolução dos problemas como a oficialização e utilização da língua chinesa, a localização dos recursos humanos e do ordenamento jurídico e a criação de um bom ambiente internacional.

Os objetivos de Portugal também. Tivemos uma transferência de poderes ordenada e condigna. Saímos com honra e prestígio. Os interesses da comunidade portuguesa e de ascendência portuguesa puderam ser salvaguardados e garantidos os seus direitos e liberdades. Foi construída uma base e um quadro jurídico sólidos para o desenvolvimento económico, social e cultural de Macau.

Os interesses de Portugal e a relação de amizade e cooperação com a China, saíram reforçados, abrindo novos horizontes ao nosso relacionamento mútuo.

Tenho uma filha que viveu e trabalhou em Macau, como curadora no Museu de Macau, cerca de dez anos, uma boa parte já depois da transferência de poderes. Sentiu-se sempre confortável e bem acolhida.

Fizemos, no fundo, o que se devia fazer.

Mas, muito se ficou a dever às virtudes do povo português que através dos tempos – um passado histórico, único, sem paralelo no Mundo, de cerca de 450 anos – soube respeitar e viver pacificamente com os chineses.

Viver e deixar viver os outros, foi o lema sempre presente.

Foram as Mulheres e os Homens, pessoas como o Padre Manuel Teixeira, o Padre Lancelote Rodrigues e o Dr. Jorge Rangel, que fizeram Macau. A este último alguém perguntou há quanto tempo ele vivia em Macau. A resposta, em sentido figurado, foi genial: “há 300 anos”. Três pessoas de uma enormíssima humanidade que merecem a minha maior admiração. Bons amigos, dois dos quais infelizmente já nos deixaram. Restará a sua memória e a memória da sua bondade e amor ao próximo.

O nosso sucesso foi também devido aos portugueses que tiveram a responsabilidade da administração de Macau, sobretudo nos últimos anos, em que essa administração coube a Portugal.

É justo que se destaque a titânica tarefa do último Governador, General Vasco Rocha Vieira, um português ilustre, cuja integridade, dedicação à Pátria e notável trabalho, ficarão para a História.

 

Angra do Heroísmo, 10 de setembro de 2024

 

Pedro Catarino

Embaixador Jubilado

Atualmente desempenhando as funções de Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, desde abril de 2011

Nota: O presente texto está incluído no livro “MACAU entre PORTUGAL e a CHINA – 25 testemunhos”.

ÂNCORA EDITORA

Novembro de 2024 – 1ª Edição

ISBN 9789727809707