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“Uma Faixa, uma Rota” – Reviver a Rota da Seda

Jantar organizado pela Associação Amigos da Rota da Seda

18 de dezembro de 2024

 

I - Introdução

Desejava, em 1.º lugar agradecer à Associação Amigos da Rota da Seda e à sua Presidente Prof. Fernanda Ilhéu, minha querida amiga, o amável convite para este jantar comemorativo do 7.º aniversário da Associação.

Permitam-me que vos felicite pelo vosso trabalho e por este aniversário.

Permitam-me ainda que dirija uma saudação muito cordial a S. Exa. o Embaixador da República Popular da China, Sr. Zhao Bentang, meu prezado amigo, que nos honra com a sua presença e que destaque o notável trabalho que tem desempenhado em prol do reforço das relações entre a China e Portugal.

Uma palavra, também, em relação aos meus colegas e amigos, Embaixadores Mário Godinho de Matos e Pedro Moutinho de Almeida.

Não querendo deixar ninguém de fora, permitam-me que mencione o Dr. Murteira Nabo, com quem tive a honra de trabalhar, o Sr. Choi e o António Nobre. Todos bons amigos. Todos fizeram e fazem parte da minha vida. Obrigado a todos pela vossa presença. Espero não vos desapontar. Vou limitar a minha intervenção apenas a uma parte do texto que preparei e que vos será enviado na sua totalidade pela professora Fernanda Ilhéu.

Faz amanhã 25 anos da transferência de poderes em Macau e do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), metade do período de 50 anos, convencionado na Declaração Conjunta (DC), para o compromisso assumido pela China de manter inalterados os sistemas social e económico e as políticas fundamentais enunciadas na DC e na Lei Básica.

Gostava de chamar a atenção para o livro “Macau entre Portugal e a China – 25 Testemunhos” que acaba de ser lançado, no passado dia 9, que inclui testemunhos dos antigos Presidentes Eanes e Cavaco Silva e do General Rocha Vieira, último Governador de Macau, atores importantes do processo de Macau.  

O Livro inclui igualmente o meu testemunho, em que traço uma perspetiva histórica e disserto sobre o papel da diplomacia no processo.

Aconselho vivamente a sua leitura. É um livro importante.

Amanhã terá lugar no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) uma sessão solene evocativa dos 25 anos da transferência de poderes em que serei palestrante e a inauguração da Galeria dos Governadores de Macau. Permitam-me ainda que vos aconselhe a ligarem os vossos televisores ao canal Internacional da cadeia de Televisão Chinesa CGTN e vejam a larguíssima cobertura sobre o 25º aniversário da transferência de poderes em Macau e o considerável tempo dedicado a Macau e a Portugal e à influência cultural portuguesa deixada no território.

É para nós uma extraordinária publicidade, gratuita ainda por cima que estou certo vai trazer muitos turistas chineses a Portugal.

Vou hoje procurar não me repetir e aproveitar esta ocasião para partilhar convosco algumas reflexões e a forma como observei através da minha experiência pessoal o contexto em que surgiu e se desenrolou o processo de Macau e as perspetivas futuras.

 

Focar-me-ei em 4 Pontos:

 

1º - O Processo de transferência de poderes de Macau foi um processo bem-sucedido. Tudo correu bem. Fizemos o que tínhamos a fazer e fizemos bem. Ambas as partes: A China e Portugal.

A RAEM é uma história de sucesso. Inegável. Como foi hoje mesmo proclamado pelo Presidente Xi Jinping à sua chegada a Macau.

 

2º - A Relação histórica de Portugal com a China deve ser diferenciada de qualquer outra.

Foi única, sem paralelo.

Deve ser valorizada pelo seu contributo para a singularidade de Macau.

 

3º- Apesar do paralelismo dos 2 processos, o processo de Macau deve ser diferenciado do processo de Hong Kong (HK).

HK nasceu de um conflito e de uma divergência de posições.

Macau nasceu de um acordo e de uma conjugação de posições e de vontades.

Isto sem menosprezo por HK que é uma extraordinária metrópole fruto do génio chinês combinado com o engenho britânico.

Passei em HK 4 dos anos mais felizes da minha vida apesar de uma série de facadas que me foram infligidas num assalto à minha residência. Podia ter sucedido em qualquer parte do mundo.

 

4º - O futuro da presença portuguesa na RAEM

Depende em 1ª linha dos chineses de Macau e dos seus dirigentes que detêm a responsabilidade da Administração da RAEM.

Depende também de Pequim e da sua liderança que detém a soberania da RAEM.

Ambos têm respeitado os compromissos assumidos no quadro da DC e estou convencido que continuarão a fazê-lo nos próximos 25 anos.

É um quadro adequado, bem pensado, fruto da visão de Deng Xiaoping, e que favorece os interesses da RAEM.

Mas a presença portuguesa no futuro depende também, em grande medida de nós próprios, portugueses, dos que vivem e labutam, em Macau, mas também do nosso Governo, dos nossos empresários, da nossa sociedade civil, na qual se inclui a vossa Associação.

Depende dos nossos esforços, do nosso empenho em mantermos a nossa utilidade, da nossa capacidade em contribuirmos para o desenvolvimento da RAEM, agora sob a bandeira e soberania da República Popular da China (RPC).

Participar em iniciativas como “Uma Faixa, Uma Rota” e “A Grande Baía” são opções a que não podemos deixar de responder positivamente, aproveitando as potencialidades que elas nos oferecem.

É um grande desafio que temos pela frente.

 

II – Macau de hoje – A RAEM

Perante um mundo em permanente ebulição e mudança, julgo que quando falamos de Macau importa sobretudo focarmos a nossa atenção no Macau de hoje e nos horizontes que se desenham para o seu futuro.

Passados 25 anos da transferência de poderes a RAEM é hoje um caso de sucesso que nos deve regozijar a todos.

Macau é hoje um território próspero com uma vida e autonomia próprias, com um desenvolvimento notável, que tem dado continuidade à herança recebida, honrando basicamente os termos da DC e os compromissos nela assumidos pela RPC.

A vida em Macau continua a ser fácil e agradável numa atmosfera de estabilidade.

A convivência entre as diversas comunidades, nomeadamente com a portuguesa processa-se com naturalidade e respeito mútuo.

As instituições têm funcionado dentro de uma normalidade e um elevado nível de eficiência.

Macau tem hoje um dos rendimentos per capita mais elevados do mundo com uma reserva financeira com mais de 600 mil milhões de patacas. Assinalável sem dúvida. Extraordinário.

É de notar que, para além do novo élan imprimido pelo Governo da RAEM na economia de Macau, com a liberalização da indústria do jogo, que levou a um desenvolvimento exponencial, Pequim, numa atitude de grande pragmatismo e visão utilitária e com base numa sábia perspetiva de longo prazo, viu que Macau podia assumir uma significativa funcionalidade para os seus interesses estratégicos com benefícios quer para a RAEM quer para a China se preservasse a singularidade de Macau e a sua identidade e diversidade multicultural e vocação histórica e papel tradicional de entreposto.

Nesta linha encorajou e apoiou a RAEM a privilegiar um certo número de áreas que têm sido desenvolvidas com grande sucesso.

Assim, a RAEM tem apostado na preservação do património arquitetónico e da identidade cultural como uma mais valia para Macau como Centro Internacional de Turismo e Lazer, tendo o Centro Histórico sido declarado pela Unesco Património Mundial em 2005.

Este ano Macau terá cerca de 34 milhões de visitantes o que é um número astronómico para um território tão pequeno, com um enorme valor económico para a RAEM.

Da mesma forma, tem vindo a ser promovida a utilização de Macau para a difusão da língua portuguesa, considerada como língua global e para um ensino universitário de carácter internacional tirando partido da herança histórica de Macau e do seu multilinguismo, e focado nas tecnologias modernas.

Tal corresponde ao entendimento do governo da China, inspirado em Confúcio, considerando o papel da educação na sociedade e como motor do desenvolvimento económico e científico.

Por outro lado, uma oferta diversificada no campo do ensino superior, tem sido uma opção estratégica importante e um meio de evitar uma concentração do motor do desenvolvimento na área do jogo.

A RAEM tem hoje 6 universidades para além dos diversos institutos de ensino superior, com uma população de mais de 20 mil estudantes e uma forte ligação às Universidades Portuguesas e do interior da China e aos países de língua portuguesa. Formidável.

Saliente-se o facto de já no tempo da RAEM ter sido autorizada e apoiada a criação de uma Universidade Católica, a Universidade de São José e de o Governo Central da China ter autorizado o recrutamento para a referida universidade de estudantes do interior da China. É uma atitude reveladora de uma notável abertura e de respeito pela liberdade religiosa.

A RAEM sob o impulso de Pequim criou ainda o Fórum para a Cooperação Económica com os Países de Língua Portuguesa, com um secretariado e serviços de apoio permanentemente instalados em Macau, que tem desenvolvido, com grande sucesso, uma ação notável na aproximação da China com aqueles países e da qual tem resultado um significativo incremento nas respetivas trocas comerciais. Saliente-se que os objetivos do Fórum já foram reajustados para um funcionamento articulado com a iniciativa “UMA FAIXA, UMA ROTA”. Importante.

Refiro ainda a continuação no quadro da DC e da Lei Básica de um ordenamento jurídico de matriz portuguesa, um dos legados estruturantes mais importantes que deixámos em Macau, que molda a vida e instituições da RAEM e que nos permite ter uma massa crítica, com uma influência notável e com grande potencial para a promoção dos nossos interesses num quadro de confiança e segurança.

Juntamente com o facto de a língua portuguesa ser língua oficial da RAEM, são talvez os dois fatores de maior impacto na preservação da presença cultural e humana portuguesa e na contribuição que poderemos dar à vida da RAEM sob a bandeira chinesa e sob a direção dos chineses de Macau no exercício da sua autonomia.

São tudo áreas que, se bem aproveitadas, podem potenciar uma ação relevante da nossa parte que devemos naturalmente promover.

Não quero deixar de assinalar como é importante que tenha sido a RAEM, ela própria, a promover as áreas referidas e não terceiros, como nós somos, a dizer-lhe o que o Governo da RAEM deve fazer, o que devemos obviamente evitar.

 

III – Passado histórico de Macau

O facto de devermos focar a nossa atenção na construção do futuro e na contribuição que nós, portugueses, podemos dar, deve ser acompanhado de um olhar sobre o passado histórico e sobre os desenvolvimentos mais recentes que levaram à transferência de poderes e ao seu sucesso.

Relativamente ao passado histórico, estamos conscientes das sensibilidades chinesas com qualquer evocação histórica que lhes diga respeito, dadas as duras humilhações que sofreram no passado na sua relação com as potências estrangeiras.

Por isso, a China quis que a DC fosse enquadrada no contexto das relações recentes com Portugal desde o estabelecimento de relações diplomáticas em 1979.

Nós não nos opusémos, respeitando os sentimentos chineses, mas importa notar que a relação histórica de Portugal com a China e o caso de Macau não têm paralelo e essa relação é bem diferenciada de qualquer outra relação com outros países.

Nada tivemos a ver com a Guerra do Ópio, com as concessões estrangeiras e com a extraterritorialidade das mesmas. Nunca recorremos à força das armas, nem nunca participámos em expedições militares, nem usámos o poder económico, de que aliás não dispúnhamos, para aventuras imperialistas, que estiveram sempre fora dos nossos propósitos.

A nossa chegada e permanência contínua e ininterrupta em Macau durante quase 5 séculos foi sempre baseada numa convivência pacífica, num compromisso mutuamente aceite e no respeito e benefícios recíprocos.

Fomos os primeiros europeus a chegar às costas da China.

Fomos os únicos a quem foi permitido que nos estabelecêssemos em solo chinês.

Durante 300 anos Macau foi o único entreposto na China administrado por um pais estrangeiro.

Permanecemos 4 séculos e meio ultrapassando as muitas mutações políticas da China desde a Dinastia Ming.

O nosso lema foi sempre viver e deixar viver.

Partilhámos o pequeníssimo território de Macau com a população chinesa, vivemos lado a lado e aprendemos a respeitarmo-nos uns aos outros.

Macau foi o ponto de encontro de dois povos, de duas culturas, de duas civilizações - a ocidental e a oriental.

Uma pequena cidade portuguesa, mas ao mesmo tempo chinesa, com templos portugueses e chineses, com arquitetura portuguesa e chinesa.

Macau durante quase 5 séculos foi desenvolvendo uma identidade única, com tradições, costumes, línguas, mentalidades e filosofias diferentes que foram evoluindo, ora cada uma por si separadamente, ora conjuntamente, entrelaçando-se num entendimento natural e dando origem a uma simbiose cultural admirável. Por vezes fundindo-se na comunidade macaense.

Que exemplo para o mundo!

Quando chegou a altura decidida pela China para a reintegração de Macau, como seu objetivo estratégico da restauração da sua integridade territorial, demos o nosso assentimento a uma transferência de poderes negociada, pacífica e ordenada, deixando uma herança que é ao mesmo tempo portuguesa e chinesa e uma matriz cultural que podemos qualificar de luso-chinesa, única no mundo e que devemos valorizar no quadro da DC e da Lei Básica, como é intenção do Governo da RAEM e que é nossa intenção ajudarmos na medida dos nossos recursos e capacidades.

Continuaremos assim a dar uma lição através do nosso exemplo ao mundo.

 

IV – Transferência de poderes

Umas palavras sobre o processo que levou à transferência de poderes.

Aqui também devemos sublinhar as diferenças que caracterizaram o processo de Macau em relação ao processo de Hong Kong.

A China sempre defendeu que HK e Macau eram territórios da China, ocupados e administrados pelo Reino Unido e por Portugal e que a sua reintegração na China deveria ter lugar quando a China considerasse que as condições estavam maduras para tal.

O momento surgiu nos anos 80, do século passado, quando terminada a Revolução Cultural, a China tinha iniciado o caminho para a sua modernização e se respirava um clima de estabilidade e confiança, com a política de reforma e abertura e até um certo liberalismo económico.

Tinham então passado 450 anos do estabelecimento dos portugueses em Macau e 155 anos do estabelecimento dos ingleses em Hong Kong.

Foi Deng Xiaoping, um gigante da História da China quem preparou e abriu o caminho para a solução do futuro de HK e Macau, através de processos negociais, baseados na fórmula “um país, dois sistemas” e prevendo um período de transição para preparar a transferência de poderes de modo a que a mesma se processasse pacifica e ordenadamente com base na continuidade e num entendimento amigável, preservando a estabilidade e prosperidade dos dois territórios e permitindo que pudessem continuar a apoiar a modernização da China.

A China decidiu começar por HK. Para isso existiam razões de face ligadas à sua carga histórica, mas também razões práticas por os chineses não quererem que o caso de Macau desestabilizasse HK.

Havia por outro lado a Convenção de 1898 e o termo da cessão dos Novos Territórios, em 1 de julho de 1997.

O processo de HK começou com uma divergência fundamental das 2 partes sobre a questão da soberania.

Tal situação gerou uma tensão quase permanente quer durante as negociações para a DC, quer durante o período de transição, quer mesmo após a transferência de poderes.

A negociação foi dura e tensa com 2 fases distintas, a primeira que se reduziu a um braço de ferro sobre a validade dos tratados.

No conjunto tiveram lugar 27 rondas em que os ingleses, depois de aceitar a inevitabilidade da retrocessão, se esforçaram para que a parte chinesa, que inicialmente tinha proposto uma DC curta e simples, aceitasse um conjunto de princípios e regras fixando as políticas a serem seguidas após a transmissão de poderes.

A DC sobre o futuro de HK foi redigida com clareza e precisão, característica dos anglo-saxónicos, numa linguagem legal apropriada, estabelecendo um quadro vinculatório minucioso.

Resolvida a questão de HK estava aberto o caminho para se iniciar o processo de Macau.

Em contraste com o processo de Hong Kong, o processo de Macau foi construído sobre um entendimento pré-existente e uma conjugação de posições e de vontades que facilitaram para que tudo decorresse de forma construtiva e harmoniosa.

Com efeito em relação a Macau os dados estavam lançados.

Quer a Constituição de 1976, quer o Acordo para o Estabelecimento de Relações Diplomáticas, em 1979, aceitavam claramente a posição da China, de que Macau era um território sob administração de Portugal, que detinha, não a soberania, mas apenas o seu exercício.

Saliente-se que nós nunca questionámos o entendimento chinês.

As negociações para a DC tiveram apenas 4 rondas e decorreram de uma forma construtiva e amigável.

O período de transição de 12 anos decorreu igualmente numa atmosfera de bom entendimento, de uma forma suave na linguagem dos chineses.

Foi um período de ouro nas relações entre a China e Portugal, com numerosas visitas recíprocas de dirigentes ao mais alto nível dos 2 países num clima de amizade e de propósitos positivos, que culminou em 2005 com o estabelecimento de uma parceria estratégica global entre os dois países.

Os problemas debatidos foram sistematicamente resolvidos num espírito de compromisso e compreensão mútua.

A Administração portuguesa liderada pelo Governador Rocha Vieira teve uma tarefa gigantesca que desempenhou exemplarmente preparando metódica e eficientemente todas as áreas da sua governação com os olhos postos no pós 99.

A diplomacia, por seu lado, desempenhou em todo o processo um papel essencial na maior parte do tempo conduzido de forma discreta e por isso pouco reconhecida.

Para evitar situações de conflito foi necessária uma grande disciplina, espírito de compromisso e isenção por parte do Governo de Macau, mas também consideráveis esforços no contexto dos trabalhos do GLC que requereram muito tato e um bom entendimento com a parte chinesa, de forma a que fosse salvaguardado o princípio da competência do Governo Português de Macau e ao mesmo tempo que se tivesse procedido a uma consulta que desse satisfação aos desideratos da parte chinesa.

No caso de Macau tudo se passou suavemente através de uma consulta no GLC discreta, franca, permanente e minuciosa, o que não foi sempre o caso de HK dando origem a tensões que não se verificaram em Macau.

Chegámos assim à data da transferência de poderes com tudo resolvido, e bem resolvido, de forma a garantir a continuidade do funcionamento das instituições e da vida normal dos habitantes de Macau, no quadro da DC e da Lei Básica, para além de 1999.

 

V – Minha experiência pessoal

Macau – 1970/1972

Permitam-me que partilhe convosco a minha experiência pessoal em que estive ligado à China.

Foram 14 anos e meio que ocorreram durante um período de 32 anos, de 1970 a 2002, em que vivi sucessivamente em Macau, Hong Kong, de novo Macau e finalmente em Pequim. Uma experiência extraordinária, enriquecedora e marcante.

Foram muitas as mudanças a que assisti como podem imaginar.

Vivi em Macau de 1970 a 1972, onde fiz o meu serviço militar e advoguei.

Grassava então na China a Revolução Cultural.

Como estamos longe desses tempos!

A China era, então, um país completamente fechado vivendo um período de paranoia coletiva.

Macau, passado o sobressalto de 1966, o chamado 1 2 3, causado pela fúria dos guardas vermelhos e, de certo modo também, pela imprevidência e insensibilidade de uma Administração Portuguesa, na altura pouco eficiente e desajeitada, tinha já regressado, por vontade da China, à sua pacatez tradicional.

A China aproveitou para deixar bem claro que a soberania do território era chinesa, para neutralizar as organizações afetas a Taiwan, conseguir uma “capitis deminutio” da Administração Portuguesa e reforçar o seu controle da comunidade chinesa e do próprio território.

Mas conseguidos esses objetivos, a China, mais uma vez, mostrou que não estava interessada em alterar o “status quo” e correr com os portugueses e que, para ela, a altura da restituição de Macau ainda não tinha chegado.

Viver em Macau era então como viver num século atrás, no passado, numa cidade de província, com uma população minoritariamente portuguesa e maioritariamente chinesa.

Grande contraste com HK.

A vida decorria a um ritmo pachorrento.

As bandeiras vermelhas e os retratos de Mao abundavam.

Experiência interessante e muito agradável, que não deixou de ter o seu charme e que recordo com nostalgia.

Assisti à distância, no final da minha estadia, à diplomacia do ping-pong e à visita do Presidente Nixon, prénunciando já uma abertura e um regresso à normalidade.

Olhando para a atual geopolítica, julgo curioso notar que a maior preocupação de Mao e dos dirigentes chineses era o seu convencimento da inevitabilidade de uma guerra com a União Soviética, então considerada o grande inimigo da China. Daí a aproximação aos EUA.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

De notar, ainda, que foi nesse período, em 1971 que a China assumiu o seu lugar nas Nações Unidas (NU) e que no Comité de Descolonização exigiu a retirada de HK e de Macau da lista dos territórios coloniais declarando que ambos faziam parte do território chinês ocupado pelas autoridades Britânicas e Portuguesas.

Permitam-me que, por curiosidade, cite um excerto de uma conversa tida em 1972, entre Nixon e Chou Enlai, cujo registo foi aberto em 1999, em que tendo sido suscitada a questão das colónias portuguesas, Chou Enlai disse a certa altura, e cito: “Portugal tem mesmo uma minúscula parte do território da China, “a very small place called Macau”, a que chama parte de Portugal e que foi adquirido há 400 anos. Muitos dos nossos camaradas dizem que com um simples piparote poderíamos recuperar o território, mas temos mantido uma atitude contida e desejamos esperar ainda algum tempo”, fim de citação.

 

VI – Hong Kong – 1979/1982

Voltei ao Oriente em 1979, a Hong Kong, como Cônsul Geral, onde estive até dezembro de 1982.

Mao tinha morrido, o Gang dos 4 tinha sido neutralizado, a Revolução Cultural acabado e Deng Xiaoping tinha emergido como líder incontestável e iniciado uma “2.ª revolução” em sentido inverso com uma política de reforma e abertura.

Foi o início da modernização da China através do investimento estrangeiro e da internacionalização da economia.

Hong Kong vivia um boom espetacular. Tudo bugia. Respirava-se um clima de otimismo e confiança. A prosperidade de HK transbordava. Até para Macau.

Foi exatamente nesse período, após a visita da Sra. Thatcher a Pequim, em setembro de 1982 e a inserção do artigo 31.º da Constituição da RPC, que foi aberto o caminho para a retrocessão de HK que arrastaria a seguir a retrocessão de Macau.

Já referi o que se passou a seguir e as tensões na relação entre a Inglaterra e a China que continuaram no período de transição tendo sido sentidas na cerimónia de transferência de poderes e que permaneceram para além de 1997.

Tudo se passou de maneira diferente com respeito a Macau.

 

VII – Grupo de Ligação Conjunto (GLC) – Macau 1989/1992

Voltei de novo em 1989, para me ocupar, nos três anos seguintes, do GLC, já na vigência da DC, um mês depois dos acontecimentos trágicos de Tiananmen.

A DC Sino-Britânica tinha já sido assinada, em dezembro de 1984, após o que tiveram lugar as negociações sobre o futuro de Macau que levaram à assinatura da DC, em abril de 1987.

Ao contrário de HK, os dados no nosso caso estavam na altura lançados.

Embora tivéssemos sublinhado as diferenças entre HK e Macau, aproveitámos evidentemente o modelo da DC Sino-Britânica beneficiando do seu rigor.

Fator positivo, foi também, o nosso espírito de conciliação e compromisso que mostrámos desde o início, não obstante a defesa das nossas posições e interesses específicos. Os trabalhos decorreram em boa harmonia.

As questões da data para a retrocessão de Macau e da nacionalidade, talvez os mais delicados das negociações, foram ultrapassados, dentro do espírito de compromisso e flexibilidade das duas partes.

Para além disso, a parte portuguesa procurou que a DC especialmente referisse, como aliás fez, a proteção do Património Cultural, muito importante para nós para assegurar a  singularidade de Macau e a memória do passado e da nossa herança, a proteção dos interesses dos habitantes de ascendência portuguesa, o reconhecimento do papel das instituições religiosas e a valorização da Língua Portuguesa, mais tarde declarada na Lei Básica, como língua oficial da RAEM, com base num acordo celebrado no GLC, no período da minha chefia. Orgulho-me disso.

Igualmente, foi nesse período, que chegámos a um acordo no GLC para que a Lei Básica da RAEM viesse a declarar aplicáveis a Macau o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais.

Foram duas conquistas importantes, não incluídas na DC, mas consagradas na Lei Básica com base em acordos alcançados no GLC, para os quais, repito, me orgulho de ter contribuído.

Foi um bom trabalho que mostra o espírito de compromisso que caracterizou os trabalhos daquele órgão, durante todo o período de transição.

 

VIII – Embaixador em Pequim – 1997/2002

Estive finalmente de 1997 a 2002 como Embaixador em Pequim. Cheguei algumas semanas depois da morte de Deng Xiaoping. Foi um período de consolidação da linha traçada por Deng: liderança política coletiva, coexistência do socialismo e do capitalismo, integração progressiva da China na comunidade internacional, adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001.

Durante esse período tiveram lugar a reintegração na China de Hong Kong, em 1997 e de Macau, em 1999, tendo eu tido o privilégio de estar presente em ambas as ocasiões.

Não quero alongar-me com uma descrição do que foi a minha extraordinária experiência de 5 anos e meio em Pequim.

 

IX – Considerações finais

Para finalizar, queria salientar que Macau iniciou, em 20 de dezembro, uma nova era, sob a soberania e a bandeira da RPC e a administração entregue aos chineses de Macau num quadro de ampla autonomia.

O quadro acordado pela RPC e Portugal, constante da DC que, conforme o compromisso solenemente assumido pela RPC, não deverá ser alterado durante um período de 50 anos, dos quais já passaram 25 anos, tem sido basicamente respeitado.

Esse quadro tem como base a fórmula visionada por Deng Xiaoping “um país dois sistemas” e assenta na ideia de continuidade.

Continuidade do sistema social e económico, da maneira de viver, de uma legislatura representativa, das liberdades e garantias, das instituições existentes, da organização judiciária e do ordenamento jurídico.

O mesmo quadro providencia igualmente a preservação do património histórico e cultural de Macau e o carácter oficial da língua portuguesa, como importantes mais valias para a consecução dos objetivos desenhados pelo governo da RAEM.

O respeito pelo quadro traçado pela DC e pela Lei Básica, sublinhe-se, é perfeitamente compatível com os novos horizontes que a nova situação veio oferecer à RAEM e de que ela tem tirado partido de uma forma notável.

Já me referi ao extraordinário desenvolvimento e ao élan que o governo da RAEM conseguiu imprimir à economia do território, fruto do génio chinês.

É extraordinário, também, o desenvolvimento do sector da educação e do ensino superior, com 6 universidades em Macau e a que o governo da RAEM atribuiu uma prioridade estratégica.

A emergência da China como uma superpotência global, 2ª economia mundial, veio proporcionar, com as suas novas valências e alta tecnologia, novas oportunidades que são também novos desafios ao desenvolvimento da RAEM. A China tornou-se uma realidade incontornável.

As iniciativas como “Uma Faixa, uma Rota” e “A Grande Baía”, altamente mobilizadoras e motores de cooperação e crescimento económico, irão certamente ocasionar uma maior integração da RAEM no espaço económico adjacente, que será inevitável e que vai trazer certamente significativos benefícios ao desenvolvimento da RAEM.

Tal integração é perfeitamente compatível com a preservação da autonomia da RAEM, que hoje está bem consolidada, e com a preservação da sua singularidade e diversidade que, como já afirmei, são ativos importantes para a RAEM.

As iniciativas referidas constituirão para nós uma boa oportunidade para dar a nossa cooperação e o nosso apoio, delas beneficiando diretamente os nossos próprios interesses, mas sobretudo promovendo através dessa cooperação a presença portuguesa na RAEM e o reforço dos nossos laços mútuos.

Para isso é muito importante um enorme esforço da nossa parte, a nível político, económico e cultural e através da sociedade civil, como é o caso da vossa Associação.

O nosso passado histórico, a nossa atitude positiva perante o desejo estratégico da China de reintegrar Macau no seu seio, a forma amigável e construtiva como oferecemos a nossa compreensão e colaboração durante todo o processo de Macau, o quadro da DC e o reforço das nossas relações com a China que se tem verificado nos últimos anos, são tudo fatores que representam para nós oportunidades e vantagens competitivas que devemos aproveitar.

Mais, que temos o dever histórico, perante as gerações passadas e as gerações futuras, de não desperdiçar.

A China viu os seus objetivos estratégicos realizados.

Portugal viu o seu papel histórico cumprido e preservada a dignidade de Portugal, assegurando os objetivos que nos propusemos e uma transferência de poderes, com solenidade e grande elevação, num espírito de amizade e entendimento.

O futuro está nas nossas mãos e depende do nosso trabalho, do nosso empenho em nos manter úteis para ajudar o desenvolvimento da RAEM, agora sob a bandeira da RPC e a administração pelos chineses de Macau.

Aqui deixo os meus votos de BOA SORTE para a RAEM,

Que tenha um futuro brilhante.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Feliz Natal para todos.

 

Pedro Catarino

18 de dezembro de 2024

 

Embaixador Jubilado

Antigo Chefe da Parte Portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto Luso-Chinês

Atualmente desempenhando as funções de Representante da República para a Região Autónoma dos Açores