GABINETE DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA
PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
SOLAR DA MADRE DE DEUS
ANGRA DO HEROÍSMO
Intervenção de Sua Excelência o Representante da República, Embaixador Pedro Catarino, no III Forum Açoriano Franklin D. Roosevelt, na cidade da Horta
27 a 29 de Abril de 2012, Horta-Faial
SESSÃO DE ENCERRAMENTO
Desejava agradecer em primeiro lugar o amável convite que a Sra. Presidente da FLAD e o Senhor Presidente do Governo Regional dos Açores me dirigiram para integrar a sessão de encerramento deste III Fórum Açoriano Franklin Delano Roosevelt e dirigir-vos algumas palavras.
Permitam-me que saliente, desde logo, a importância deste Fórum e a oportunidade do tema escolhido.
De 2 em 2 anos a FLAD traz-nos a memória de um grande Americano que desempenhou um papel histórico de grande impacto no rumo da Humanidade.
Recordando-o e assinalando a sua passagem em 16 de Julho de 1918 por esta ilha do Faial em que nos encontramos, estamos também a prestar homenagem à grande nação americana e a quanto lhe devemos pela defesa dos valores universais da liberdade, da dignidade humana e da democracia que com ela comungamos e pelos quais nos batemos conjuntamente.
Estamos também a reconhecer a fortíssima ligação existente entre os Açores e a nação americana não só pelo papel deste arquipélago em situações do passado, críticas para os interesses dos EUA e pelo apoio estratégico que continua a proporcionar mas também pela presença nos EUA de muito significativas comunidades açorianas fortemente ligadas às suas origens.
O Fórum proporciona-nos uma oportunidade regular para reflectirmos e debatermos matérias de interesse comum e contextualizarmos e pôrmos em relevo o papel e relevância dos Açores.
Constitui também um ponto de encontro e reunião de pessoas com laços comuns que se vão solidificando e reforçando, contribuindo, por um lado, com a sua participação intelectual e com o seu espírito de dedicação e afecto para a aproximação entre os EUA e Portugal e, por outro lado, para um maior envolvimento e melhor conhecimento dos Açores.
Permitam-me que neste contexto dirija uma saudação muito especial aos distintos participantes Tony Cabral, Barney Frank e Frank Sousa que tive o prazer de conhecer e com eles conviver nos EUA. It is good to see you again.
O momento presente é um momento delicado em que os EUA estão a proceder a uma reavaliação da sua estratégia numa escala global e da afectação dos seus recursos em face dos constrangimentos económicos e da adaptação às novas realidades de um mundo em mutação.
Espero sinceramente que esta problemática, no que diz respeito aos Açores, seja tratada com toda a prudência e sabedoria, que toda uma longa relação histórica e as presentes circunstâncias aconselham.
A relação dos EUA com esta Região Autónoma é muito mais do que uma mera relação de natureza militar. Há muito que pode e deve ser feito que não apenas no sector da defesa para preservar essa relação privilegiada e para manter os benefícios que dela têm justamente resultado para os Açores.
Bastará um esforço sincero e vontade política.
Um dos sectores que apresenta porventura maiores potencialidades para o desenvolvimento desse esforço é precisamente o mar, tema deste Fórum.
Estou certo que as comunicações feitas neste forum e as discussões havidas constituirão uma interessante e útil contribuição para uma análise dos vários caminhos que se nos deparam, análise essa que necessita de ser sistemática, aprofundada e focada no plano concreto.
Pela minha parte aproveitarei esta ocasião para me referir aos aspectos mais ligados às minhas competências como Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, ou seja, a vertente jurídico-constitucional.
Falarei pois sucintamente sobre os parâmetros legais genéricos em que, em minha opinião, se deverá desenvolver a acção legislativa no sector do mar, com um breve enquadramento sobre a matéria.
Os anos mais recentes têm sido pródigos em eventos ligados ao mar, denotando um renovado interesse pelo seu conhecimento, pela sua importância política e estratégica, pelo seu aproveitamento económico, mas também pela sua preservação do ponto de vista ambiental. Parecem, pois, definitivamente superados os preconceitos que, após a revolução democrática de 1974, viam o mar como algo que pertencia à nossa história – certamente gloriosa –, mas ainda assim como um valor passadista, sem possibilidade para servir de base à construção de novas representações de futuro.
É hoje pacífico que a opção europeia que Portugal assumiu com a sua adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1986, não pode ser entendida como exclusão da sua ancestral vocação marítima. O nosso empenhamento no projecto da União Europeia, no reforço das suas instituições e da coesão económica e social do seu território continental – onde, aliás, sempre seremos um pequeno país periférico –, nunca deverá fazer esquecer que só o mar português – devido ao contributo conjunto dos territórios marítimos do Continente, da Madeira e dos Açores – nos pode colocar no centro do mundo ocidental.
É portanto com o maior prazer que me associo a esta conferência organizada pelo Fórum Roosevelt, tanto mais que realizada aqui nos Açores, que é de todas as regiões portuguesas aquela que é mais marcada pelo mar, na vida quotidiana das pessoas, na sua cultura e forma de sentir, no seu trabalho, na sua actividade económica. Ao contrário do que sucedeu noutras paragens, e ao arrepio daquela que foi doutrina dominante entre os órgãos de soberania durante largos anos, os Açores e os seus governantes nunca voltaram as costas ao mar.
Após tantas e tão interessantes intervenções, gostaria apenas de chamar a atenção para a circunstância de não ser possível transformar o actual interesse teórico sobre o mar português num efectivo relançamento das actividades a ele ligadas – investigação científica, aproveitamento de recursos geológicos, pesca e aquicultura, turismo de recreio, produção de energias renováveis, transporte marítimo e movimento portuário, protecção da biodiversidade, etc. – sem um enquadramento jurídico bem estruturado, simultaneamente claro, simples e estável. Enfim, um quadro jurídico que os agentes que intervêm no sector possam compreender com facilidade e que inspire a confiança necessária para que projectos e investimentos possam avançar. Essa definição jurídica é tanto mais importante nas regiões autónomas – e, em particular, aqui nos Açores – quanto é certo que nos contextos insulares se cruzam diferentes níveis de intervenção legislativa, regulamentar e executiva.
Esse enquadramento normativo – que tem naturalmente de ser desenhado a partir da Constituição – não está ainda adequadamente definido, sobretudo no plano da legislação ordinária. Ao contrário do que sucede com outras áreas da governação, a Constituição não contém qualquer programa ou quaisquer directrizes materiais que norteiem os órgãos do poder político no desenvolvimento de políticas relativas ao mar. Tão-pouco a Constituição prevê de forma expressa a existência de uma lei de bases, em que a Assembleia da República seja chamada a estabelecer as traves mestras de todas a políticas públicas relativas ao mar e ao aproveitamento das suas potencialidades. A Constituição não prevê tal lei, ela não existe, mas nada impede - e tudo parece aconselhar - que seja feita, de modo a promover a articulação horizontal das diversas políticas sectoriais sobre o mar que já estão a ser implementadas ou que estejam em vias de o ser.
As preocupações dos constituintes em relação ao mar - há que reconhecê-lo - eram substancialmente diferentes daquelas que porventura são hoje dominantes: o mar era encarado, em primeiro lugar, como uma parte do território nacional, que importava delimitar e que constituía objecto do exercício de poderes soberanos; o mar era ainda visto, em segundo lugar, como um bem dominial e, mais precisamente, como um bem que integrava o domínio público necessário do Estado.
Assim, por um lado, o nº 2 do artigo 5º da Constituição determina que “a lei define os limites e a extensão das águas territoriais, a zona económica exclusiva e os direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos”. Nessa sequência, a alínea g) do artigo 164º integra essa lei na reserva absoluta de competência da Assembleia da República.
Por outro lado, a alínea a) do nº 1 do artigo 84º da Constituição afirma que “as águas territoriais com os seus leitos e fundos marinhos contíguos” pertencem ao domínio público - entenda-se ao domínio público estadual, em conformidade com a lei que, nos temos do nº 2, deve proceder à repartição dos bens dominiais pelo Estado, pelas regiões autónomas e pelas autarquias locais. Nessa sequência, a alínea v) do nº 1 do artigo 165º coloca a “definição e regime dos bens do domínio público” no seio da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
Significativamente, ao longo do seu articulado a Constituição só volta a pronunciar-se sobre o mar uma única vez, quando na alínea s) do nº 1 do artigo 227º se confere às regiões autónomas o poder de “participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”. Quer isto dizer, portanto, que olhando à profundíssima ligação dos Açores e da Madeira ao mar, o legislador constituinte entendeu por bem inserir no modelo de relacionamento entre o Estado e as regiões autónomas um poder especial de participação, que compensasse de certa forma quer a dupla reserva de competência legislativa do Parlamento, quer a circunstância de a definição das políticas em referência ter de efetuar-se ao nível nacional.
Por outras palavras, a governação (lato sensu) do mar há-de reflectir tanto a natureza unitária do modelo de Estado consagrado pela Constituição (artigo 6º e artigo 225º), quanto o paradigma constitucional de regionalismo cooperativo que preside às relações entre o Estado e as suas regiões autónomas (artigo 229º). Se aquela natureza unitária se manifesta através das referidas reservas de competência legislativa em favor dos órgãos de soberania - e do Parlamento em particular -, bem como por meio da necessidade de uma definição nacional das correspondentes políticas, este paradigma de regionalismo cooperativo desemboca antes de mais no reconhecimento de um especial poder regional de participação: tanto na feitura daquelas leis reservadas (227º, nº 1, alínea v) e 229º, nº 2), como no processo de delineamento destas políticas nacionais (227º, nº 1, alínea s) e 229º, nº 2).
Mas, em minha opinião, não se ficam por aqui os traços fundamentais do modelo em apreço no que respeita ao mar. Com efeito, é importante sublinhar que as duas reservas de competência legislativa da Assembleia da República não esgotam a temática do mar: elas cingem-se a duas perspectivas específicas de abordar a problemática do mar, sendo hoje pacífico - até mesmo na jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 402/2008) - que elas deixam espaço para intervenções legislativas regionais, mormente quando estas se limitem no essencial a dispor sobre a gestão económica do mar e das suas potencialidade e sobre a conservação do seu equilíbrio ecológico. Ou seja, quando não ponham em causa o estatuto da sua territorialidade e o regime da sua dominialidade.
Além disso, mesmo quando as matérias em questão se encontram efectivamente reservadas aos órgãos de soberania, não podemos esquecer-nos que a Constituição não obriga o legislador a fazer uma lei autónoma (ou nominada) só sobre os conteúdos objecto da reserva. Por isso, quando se trata de disciplinar matérias que envolvam o relacionamento entre o Estado e as regiões autónomas, leis reservadas aos órgãos de soberania são, acima de tudo, os próprios Estatutos Político-Administrativo - os quais, como é sabido, têm também na sua origem e no seu processo de formação uma intervenção qualificada dos órgãos regionais (artigo 226º).
Não é de estranhar, por conseguinte, que os Estatutos Político-Administrativos sejam leis absolutamente incontornáveis quando se trata da temática do mar. Tomando o Estatuto da Região Autónoma dos Açores como exemplo - não apenas por estarmos nos Açores, mas também porque é o mais recente e o que contém disposições mais desenvolvidas sobre a matéria em apreço -: é nele que se procede à delimitação do território terrestre e marítimo regional, como parcelas do território terrestre e marítimo nacional (artigo 2º, nº 2); é nele também que se faz o elenco dos bens que integram o domínio público da Região, e se exclui desse elenco o domínio público marítimo (do Estado) (artigo 22º, nº 3).
Sobretudo, é aí que encontramos o artigo 8º, cuja interpretação sistemática permite antes de mais identificar dois aspectos importantes para a delimitação negativa do seu conteúdo: por uma banda, nele não se atribuem quaisquer competências legislativas regionais, que são definidas noutra sede estatutária; por outra banda, nele não se versa sobre a titularidade do domínio público e muito menos se põe em questão a sua titularidade estadual.
Pela positiva, da sua leitura ressalta um modelo de repartição das atribuições e competências que, no âmbito da função administrativa, hão-de pertencer ao Estado e à Região Autónoma dos Açores no que respeita ao mar e, em particular, ao domínio público marítimo.
Nele se demarcam três domínios competenciais distintos:
- de um lado, uma reserva absoluta de Governo da República, respeitante a todas aquelas competências que envolvam o exercício de prerrogativas soberanas ou que pela sua natureza devam ser exercidas de forma unitária em todo o território nacional;
- do lado oposto, uma competência tendencialmente reservada à Região de licenciamento (e actuações afins) nas áreas da extracção de inertes, das pescas e da produção de energias renováveis;
- a meio termo entre uma e outra, situa-se por fim uma ampla zona (residual) de competências concorrenciais entre o Estado e a Região, a qual deve subordinar-se a um princípio de gestão partilhada: ou seja, em que o legislador deve estabelecer mecanismos de co-decisão, ou de cooperação, ou procedimentos reforçados de consulta.
Porque a realidade é sempre demasiado complexa para caber nos limites de uma qualquer classificação, não se trata obviamente aqui de três domínios competenciais que possam ser recortados com precisão cirúrgica. Há entre eles zonas cinzentas e sobreposições inevitáveis. Mas, por isso mesmo, é preciso ter a consciência de que o artigo 8º não é uma norma exequível por si mesma e, mormente, de que não pode haver gestão partilhada sem uma intervenção legislativa dos órgãos de soberania que determine - naturalmente de uma forma participada - os termos dessa mesma partilha.
A Região tem feito um sensível esforço de densificação normativa das suas competências em matéria de gestão do mar e de protecção do ambiente marinho, mas a verdade é que o artigo 8º implica também uma responsabilidade dos órgãos de soberania, que é a de estabelecer uma quadro legislativo ordinário que possa servir de esteio seguro ao prosseguimento desse esforço.
Não quero alongar-me mais com questões que podem parecer minudências jurídicas. Mas não gostaria de terminar sem sublinhar novamente que nesta matéria, como em muitas outras, o quadro legislativo tem de ser delineado com precisão e rigor, de modo a inspirar nos seus destinatários a confiança necessária, sem a qual corremos o risco de deixa morrer na praia este renovado interesse pelo mar que tanto trabalho tem dado a construir.
Permitam-me que finalize felicitando a FLAD e o Governo Regional dos Açores pela realização deste Fórum e exprima os meus votos para que o trabalho aqui realizado seja agora aproveitado nos trabalhos futuros sobre o sector do mar. Uma palavra especial ao Dr. Mário Mesquita e à comissão organizadora pela sua excelente coordenação.
Agradeço a todos a vossa participação e contribuições e a atenção que me dispensaram.
Boa viagem de regresso aos vossos destinos.
Bem hajam e muito obrigado.
Pedro Catarino
Horta, 29 de Abril de 2012