Voltar Página Principal
Search

GABINETE DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA

PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES

SOLAR DA MADRE DE DEUS

ANGRA DO HEROÍSMO




Intervenção de Sua Excelência o Representante da República, Embaixador Pedro Catarino, na sessão solene de comemoração do Centenário da Eleição do Primeiro Presidente da República, Dr. Manuel de Arriaga




24-08-2011



É uma honra para mim e um especial prazer presidir à presente comemoração da eleição do primeiro Presidente da República Portuguesa, o ilustre filho desta terra, Dr. Manuel de Arriaga.

Desde já gostaria de felicitar a Associação dos Antigos Alunos do Liceu da Horta e a sua Direcção, na pessoa do seu presidente. Sr. Prof. Doutor Melo Barreiros por esta tão louvável iniciativa.

Para uma comunidade se afirmar e se projectar no presente e no futuro é necessário que se debruce sobre o seu passado e sobre a contribuição dada pelos seus antepassados nos diversos sectores, seja como corpo colectivo incluindo o povo anónimo, seja individualmente, através dos seus membros que mais se destacaram.

O estudo e análise de tais contributos é essencial para que se possa assumir a consciência e o conhecimento de uma identidade própria que se deve aceitar e promover não como uma realidade rígida e cristalizada, mas como uma herança susceptível de ser enriquecida e sucessivamente adaptada às realidades de um mundo em que nos integramos e que não cessa de evoluir e se transformar.

Os Açores têm um passado riquíssimo, quer no plano da cultura e das artes, quer no plano social e político.

O número de açorianos que se destacaram e que tiveram um papel de grande relevância num âmbito bem mais alargado do que o do seu arquipélago é impressionante, tendo sobretudo em atenção a sua população.

Em particular no plano político a sociedade açoriana gerou uma plêiade de espíritos brilhantes com grandes capacidades intelectuais que em gerações sucessivas se afirmaram e impuseram na arena política nacional ao nível mais elevado.

É uma tradição que se tem mantido até aos dias de hoje e que estou certo continuará no futuro.

Um dos casos mais emblemáticos foi o do faialense Manuel de Arriaga que, num momento altamente dramático da nossa História com mudanças profundas na nossa sociedade como foi o da queda da Monarquia e a instauração da República, foi chamado a ocupar o lugar cimeiro de 1º Presidente da República Portuguesa.

Sobre a figura de Manuel de Arriaga, que hoje aqui homenageamos, já dissertaram os ilustres oradores desta sessão comemorativa.

Correndo o risco de estar a repetir factos já referidos permitam-me que aqui sublinhe algumas das facetas do percurso político de Manuel de Arriaga.

Primeiro para referir o papel de lutador tenaz e irredutível pelos ideais republicanos e virtudes democráticas que desempenhou no período que precedeu a queda da Monarquia.

Crítico acerbo da Monarquia e da corrupção grassante e defensor dos fracos e oprimidos, foi ao mesmo tempo adepto de uma conciliação entre os portugueses sem distinção de confissões, seitas ou partidos, da paz e da ordem, da harmonia social e de um acordo estável entre a República e a Igreja com as suas respectivas esferas de acção independentes, dentro do princípio da supremacia do poder civil.

Instaurada a República, Arriaga já com 72 anos foi proposto e eleito pelos seus pares como Presidente da República.

Foi-o pela sua integridade, pelo equilíbrio das suas posições, pela sua sinceridade e independência, pelo seu alto nível intelectual e pelas suas qualidades e estatura moral.

A sua presidência não foi porém uma tarefa fácil nem teve lugar num período fácil.

A instabilidade social que se vivia, as divisões partidárias e falta de entendimento entre os políticos, o endividamento crónico do Estado e as fraquezas daí resultantes, as incursões monárquicas, as ameaças às nossas colónias, o início da 1ª Guerra Mundial, tudo foram factores que dificultaram uma vida política normal.

A acrescer a este contexto, a Constituição de 1911, discutida e aprovada pelo Congresso na euforia revolucionária republicana nuns escassos 2 meses e meio, continha contradições que viriam a pôr Arriaga perante dilemas de superação muito difícil para não dizer impossível.

Por um lado a Constituição atribuía ao Presidente da República missões alargadas e de superior importância. Era o Presidente que representava a Nação nas relações gerais do Estado e que era o guardião da integridade e independência da Pátria. Competia-lhe promover o bem geral da Nação. Etc., Etc.

Mas a mesma Constituição estabelecia que as competências atribuídas ao PR deveriam ser exercidas através dos Ministros e que todos os actos do PR deveriam ser referendados pelo Ministro competente, sem o que seriam nulos.

A Constituição obedeceu assim a uma linha que procurava evitar em absoluto qualquer predomínio do poder pessoal.

O poder legislativo era o supremo representante da soberania nacional, elegia o PR e podia em qualquer momento destituí-lo por uma maioria de 2/3.

O PR não podia em caso algum dissolver o Parlamento.

O seu mandato era por 4 anos, sem possibilidade de reeleição.

Esta linha imbuía outros aspectos relativos ao exercício das funções presidenciais: salário modesto, staff de apoio reduzido, meios extremamente limitados.

Na comissão de redacção da Assembleia Constituinte chegou a defender-se que o que convinha à República era um PR simples, modesto e ao mesmo tempo barato.

O próprio Arriaga queixa-se no seu relatório sobre os 4 anos na presidência, com alguma amargura, das condições “um pouco difíceis”, diz ele, em que iniciou o mandato: sem casa, sem dinheiro, sem meios de transporte, sem secretário, sem Protocolo, sem conselho de Estado. Tivemos de alugar, diz, o Palacete da Horta Seca para nele nos instalarmos como Chefe de Estado e de adquirir parte do mobiliário, fomos obrigados a comprar um automóvel para as deslocações oficiais.

Na Secretaria não havia instalação apropriada, nem colecções de leis, nem revistas nacionais e estrangeiras, nem jornais, nem dinheiro para os comprar; nem havia pessoal. Era como se não existisse.

Mas, mais graves que estas limitações de ordem material foram as já referidas contradições constitucionais entre as atribuições meramente teóricas do PR e o seu poder efectivo, que a própria Constituição reduzia a zero.

Assistimos no período da presidência de Manuel de Arriaga a uma sucessão de crises e de governos efémeros, não durando cada um mais do que escassos meses e nalguns casos dias.

Arriaga viu-se assim confrontado com situações cada vez mais difíceis. De um lado uma situação político-económica insustentável, com tensões sociais crescentes, do outro uma Constituição que não lhe dava qualquer poder real.

Entendia que como Presidente tinha uma missão a cumprir. Competia-lhe salvar a Nação do abismo.

Neste sentido, fez tudo para ultrapassar as dificuldades, tentando sempre encontrar soluções, num espírito conciliatório.

Nunca deixou de apelar aos chefes dos partidos solicitando a sua ajuda e a sua disponibilidade para assumirem as suas responsabilidades, um após outro.

Todos estes esforços foram sempre feitos sem consideração pelo interesse próprio, quer do ponto de vista do poder pessoal que nunca procurou, quer do ponto de vista de uma agenda política, exclusiva ou partidária.

Foi sempre orientado por aquilo que entendia ser o bem público, o interesse da Nação.

Tudo o que fez foi em nome da Pátria e da Liberdade.

Ele próprio se proclamava o guardião de 4 tesouros: a Liberdade, a honra da Pátria, a Regeneração e o Povo Português.

Toda a sua acção deve ser vista e julgada à luz da sua personalidade e dos valores que consistentemente sempre defendeu.

Mas a situação de ingovernabilidade do país com as quezílias político-partidárias a dominarem a cena política, o divórcio crescente entre o povo e a classe política, o fosso existente entre o Exército e os governantes quanto à participação de Portugal na 1ª Guerra Mundial, acabou literalmente por levar o Presidente Arriaga a assumir e sobretudo a condescender com atitudes contrárias à Constituição que geraram reacções violentas e numerosas vítimas.

Ele, um democrata, defensor do povo, amante da sua Pátria, um intelectual generoso e íntegro, um homem bom cuja intenção única era tirar o país da situação crítica em que se encontrava, acabava assim por se ver envolvido e em parte responsabilizado por colocar em perigo a República, desencadear uma onda de violência e agravar ainda mais a situação de desespero em que se vivia.

Amargurado resigna, abandona a política.

Usa as forças e energia que ainda lhe restavam para escrever “um rápido relatório”, como lhe chamou, intitulado “Na Presidência da República Portuguesa”.  

Nesse relatório confessa nunca ter sido um político de profissão, fala dos seus ideais – a Humanidade ao serviço do Bem, do Belo e do Justo; o Direito como esteio indestrutível da vida social; a defesa dos oprimidos.

Afirma o seu desinteresse pelas coisas materiais sublinhando que saíra do poder mais pobre do que quando entrara.

Recorda com nostalgia a sua acção como parlamentar nos tempos da Monarquia e a sua luta contra a corrupção e o nepotismo e diz com tristeza:

“Devíamos ter fechado aqui a nossa carreira política. Melhor fora que assim tivesse sido”.

Minhas Senhoras e meus Senhores

Todos os políticos fazem erros, muitos erros mesmo.

Todos nós os fazemos.

As circunstâncias, o contexto nacional e internacional, as forças políticas existentes, tudo são factores mais ou menos poderosos e mais ou menos incontornáveis.

Manuel de Arriaga pode ter cometido erros e até erros graves no exercício das suas funções de PR.

Mas nunca deixou de ser um homem bom, íntegro, um humanista mais dedicado ao seu próximo do que a si próprio.

As decisões e atitudes que assumiu foram tomadas, no espírito de missão ao qual sentia não poder renunciar.

E essa missão era servir o seu país, Portugal.

É justo que lhe dediquemos o nosso carinho e respeito.

E que aqui no Faial, terra onde nasceu e onde se formou o seu carácter e que ele tanto amou, lhe prestemos uma homenagem merecida.

Permitam-me ainda que aproveite esta oportunidade, que coincide com a minha primeira visita ao Faial desde que assumi as funções de Representante da República para a Região Autónoma dos Açores, para dirigir a todos e em especial aos faialenses as minhas saudações mais cordiais e fraternas.

 

Muito obrigado

 

Horta, 24 de Agosto de 2011