Conferência do Representante da República aos Auditores do
49.º Curso de Defesa Nacional do IDN
Angra do Heroísmo, 25 de fevereiro de 2025
Boa tarde,
As minhas saudações de boas vindas a todos.
É com muito prazer que recebo, mais uma vez, um curso de defesa nacional do IDN.
Permitam-me que dirija uma saudação especial aos Senhores Coronel João Barbas e Coronel José Leite, Diretor e Subdiretor do curso e nas suas pessoas à Exma. Diretora do Instituto de Defesa Nacional, Professora Doutora Isabel Ferreira Nunes.
Uma saudação especial também aos membros do curso representando países irmãos da CPLP.
Falar-vos-ei das minhas funções e do seu enquadramento constitucional, que visa conciliar o princípio da unidade do Estado com o da autonomia das Regiões Autónomas.
Antes disso desejaria referir de forma muito breve o contexto internacional, incontornável como ele se nos apresenta nos nossos dias.
Estarei à vossa disposição para, no final, responder às perguntas ou pedidos de esclarecimentos que me queiram fazer.
*
Encontramo-nos, hoje, perante um mundo em grande turbulência, cheio de incertezas, como nunca aconteceu desde a II Guerra Mundial, em que as profundas mutações geopolíticas, o impacto das novas tecnologias e o agravamento das alterações climáticas nos colocam em face de novas ameaças e desafios e da necessidade imperativa de tudo fazermos para garantir a segurança dos nossos países e o desenvolvimento económico e social das nossas sociedades na construção de um mundo em paz, mais próspero e justo.
A brutal invasão da Ucrânia e a agressão da Rússia negando-lhe o direito de existência e o direito de fazer as suas próprias escolhas, satisfazendo as aspirações de liberdade e democracia do povo ucraniano, ditou o colapso da ordem internacional pacientemente construída desde o fim da II Guerra Mundial e a impotência das Nações Unidas perante o sistemático veto, no Conselho de Segurança, por um dos seus membros permanentes.
Encontramo-nos perante um retrocesso dos avanços civilizacionais que julgávamos como adquiridos, agravado por campanhas de desinformação disseminadas através de meios informáticos proporcionados pelas novas tecnologias e por variadas formas perversas da chamada guerra híbrida.
Acresce o facto de a solidez e unidade dos países democráticos ter sido posta em causa, fragilizando a frente tentando impedir o sucesso das forças predadoras.
É altura de olharmos para nós próprios, para as nossas sociedades e instituições e para as relações com os países de que estamos mais próximos por razões ligadas a uma história comum e a afinidades afetivas, culturais, políticas e económicas, mas também irmanados no respeito e na defesa do Direito Internacional e de valores comuns que salvaguardam a dignidade humana, a liberdade e a democracia.
Não podemos deixar de acreditar nos nossos valores e na esperança de que é possível fortalecê-los e fortalecer as nossas instituições que os preservam e asseguram. O papel da UE é hoje mais importante do que nunca.
É essencial que nos dotemos dos meios materiais no plano da defesa, da economia e da ciência e tecnologia que nos permitam fazer face ao novo contexto.
Mas não é menos importante que conservemos o ânimo, a vontade e a coesão social das nossas sociedades, que lhes dê a força moral para resistirmos às ameaças e avançarmos na construção de um mundo melhor.
*
Duas palavras sobre o posicionamento de Portugal e dos Açores na esfera internacional.
Somos um país com uma longa história que nos levou aos 4 cantos do mundo, que nos deu uma visão humanista e uma tolerância e aceitação da diversidade cultural da Humanidade e que moldou o caráter e atitudes do nosso povo.
Espalhámos a fé cristã e a língua portuguesa, hoje com uma dimensão global falada por mais de 250 milhões de pessoas em 4 continentes.
Os vértices da nossa política externa estão hoje bem definidos: União Europeia, CPLP, NATO e relação transatlântica e abertura ao mundo, esta reforçada por laços históricos seculares com muitos países e uma importante diáspora.
São vértices simples e claros dos quais resultam uma estabilidade e uma previsibilidade que só podem favorecer a nossa imagem internacional, a nossa capacidade de ação e a relevância do nosso papel nas organizações internacionais.
É este “mix” que, persistentemente e metodicamente, temos que valorizar com a nossa criatividade, reforçando os nossos laços e as potencialidades de cada um dos vértices, evitando ao mesmo tempo, com tato e paciência, o seu enfraquecimento ou diluição por fatores que nos são estranhos.
E devemos fazê-lo com convicção e autoconfiança, seguros de que temos todos os atributos requeridos e um papel a desempenhar.
Não é por acaso que o SG das NU e o Presidente o Conselho Europeu são portugueses.
Como não foi por acaso que nas duas últimas eleições em que participámos para o CSNU, as mais importantes e disputadas eleições daquela organização, fomos eleitos.
Em 1996, vencemos a Austrália e, em 2010, o Canadá, dois poderosíssimos competidores.
Que mais precisamos para demonstrar o nosso “soft power”?
Pena que os órgãos de comunicação social portugueses, não tenham dado a importância que estas vitórias teriam merecido.
Quanto aos Açores, os vértices do seu posicionamento no plano internacional são também simples e claros: Açores, Portugal e Europa - Açores e o exercício da sua autonomia política, a sua integração na soberania e espaço nacional e o aprofundamento da relação com a União Europeia.
Acrescentaria o mar e o espaço e ainda a relação com os EUA.
São os Açores e a Base das Lajes que justificaram que Portugal viesse a ser membro fundador da NATO, em 1949, e são os Açores e a sua posição estratégica no Atlântico Norte, hoje posta em relevo devido às novas ameaças, que contribuem para o valor que Portugal tem no relacionamento com os EUA.
Por outro lado, é o Mar dos Açores que dá verdadeiramente a dimensão atlântica a Portugal e, também, numa boa medida, à UE.
O mar é cada vez mais um fator importante para a segurança internacional e para a segurança das comunicações marítimas e digitais, bem como para a conservação da natureza e da biodiversidade marinha e para o seu papel quanto ao equilíbrio ecológico e às alterações climáticas.
Neste contexto, os Açores têm-se colocado na vanguarda, eu diria a nível mundial, na sua estratégia e nos seus esforços de assumirem uma posição pioneira e corajosa no estabelecimento de áreas marinhas protegidas, dando um exemplo que tem sido aplaudido universalmente.
Por outro lado, iniciativas como o Air Center visando congregar os países ribeirinhos do Atlântico, numa cooperação Norte – Sul e Sul – Norte, promovendo o conhecimento científico numa abordagem integradora do espaço, clima, oceano e energia e procurando garantir, através de ações concretas, a segurança e sustentabilidade de todo o Oceano Atlântico, dão uma centralidade ao papel dos Açores que deve ser apoiado vigorosamente.
O espaço tem sido outra das áreas em que se tem verificado um papel de relevância crescente dos Açores. Refiro apenas todo o trabalho desenvolvido no TERINOV – Parque de Ciência e Tecnologia da Ilha Terceira e o recente estabelecimento da sede da Agência Espacial Portuguesa, na Ilha de Santa Maria, onde também está localizado um centro de lançamento de foguetões para o espaço.
Funções do Representante da República
I – Introdução
Passo a referir-me às minhas funções.
Como porventura a maioria de vós sabe, eu sou um diplomata de carreira jubilado que me encontro a desempenhar o cargo de Representante da República para a Região Autónoma dos Açores.
Estou nos Açores há quase 14 anos, aproximando-se o final do meu 3º mandato para o qual fui nomeado pelo Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Para o 1º mandato fui nomeado pelo então Presidente, Professor Cavaco Silva.
O mandato tem a mesma duração, 5 anos, do mandato do Presidente da República, que nomeia o Representante da República, depois de ouvido o Primeiro Ministro.
O Representante da República responde perante o Presidente da República de cuja confiança exclusiva depende. Tem, contudo, competências próprias definidas pela Constituição, Estatuto Político-Administrativo da Região e Estatuto do Representante da República.
O atual Presidente da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, entendeu por bem consultar, previamente à nomeação, conforme informou nas tomadas de posse dos 2 Representantes da República, os órgãos de governo próprio das Regiões, embora tal consulta não seja imposta pela Constituição ou pelo Estatuto.
Sou o nono titular do lugar, que teve a designação inicial de Ministro da República, quando criado em 1976 pela Constituição.
Os 4 primeiros foram oficiais generais, o quinto um professor de Direito e os 3 seguintes Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça.
Denominador comum entre os nomeados, é o facto de todos serem servidores do Estado, com longas carreiras de serviço público, sem ligação aos partidos e sem qualquer atividade político-partidária.
É este também o meu caso. Abracei a carreira diplomática em que o serviço do Estado se sobrepõe às convicções ideológicas ou preferências partidárias.
Assumi durante a minha carreira ativa funções de representação do Estado em países estrangeiros, negociações internacionais e organizações internacionais em que procurei sempre servir os interesses do meu país, sem distinguir a cor política dos governantes do momento.
Creio que este facto é importante para se compreender o meu desempenho como Representante da República. Exerço as minhas funções com total independência de quaisquer forças partidárias, todas legitimadas pelo Tribunal Constitucional e merecedoras de igual respeito e consideração.
Tenho a minha residência oficial em Angra do Heroísmo onde funciona o meu Gabinete. Tenho outra residência oficial em Ponta Delgada onde me desloco frequentemente.
Como saberão, dentro do princípio da multipolaridade, houve a preocupação de distribuir os órgãos de poder regionais pelas 3 ilhas principais: O Presidente do Governo Regional e a maior parte das Secretarias Regionais estão sediadas em Ponta Delgada, a Assembleia Legislativa está sediada na Horta e o Representante da República, o Vice-Presidente do Governo Regional e 3 Secretarias Regionais, em Angra do Heroísmo.
Tenho, além disso, um Gabinete em Lisboa, onde me desloco com frequência e onde funciona um núcleo jurídico liderado por um Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica.
O contacto permanente com as instituições nacionais é particularmente importante, dado o papel de ponte que muitas vezes sou chamado a assumir, dadas as minhas funções.
II – Antecedentes Históricos
O estabelecimento do regime autonómico dos Açores foi estatuído pela Constituição de 1976 e constituiu um marco importante da história moderna dos Açores.
A Constituição diz no seu artigo 6º, e cito:
1. O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e de descentralização democrática da administração pública.
2. Os Arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio.
Por sua vez o artigo 225º diz, e cito:
1. O regime político-administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta-se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares.
2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.
3. A autonomia político-administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição.
A Constituição, à sua entrada em vigor, em 25 de Abril de 1976, previa, então, a existência de um Ministro da República, nomeado pelo Presidente da República sob proposta prévia do Primeiro-Ministro e responsável perante os dois, com competências políticas, ministeriais e administrativas e vicariantes de Chefe de Estado.
O Ministro da República superintendia as funções administrativas exercidas pelo Estado na Região e coordenava-as com as exercidas pelos órgãos regionais.
Participava então nas reuniões semanais do Conselho de Ministros.
Em caso de dissolução ou suspensão dos órgãos regionais, era o próprio Ministro da República que deveria assegurar interinamente o governo da Região.
Este quadro, que configurava de certo modo um sistema de tutela sobre os órgãos de governo próprio regionais, deu origem ao chamado “contencioso das autonomias” que marcou os primeiros anos do regime autonómico dos Açores.
Era um modelo de regionalismo que caracterizou a primeira fase de vivência das autonomias regionais portuguesas e que continha um conjunto de mecanismos institucionais, com o Ministro da República como órgão de controlo, que enquadravam o poder político regional e o sujeitavam à unidade do Estado. Este quadro foi evoluindo através de sucessivas revisões constitucionais – 1982, 1989, 1997, 2004 – que vieram reforçar e densificar a autonomia da Região e alargar significativamente os poderes legislativo e executivo dos órgãos regionais, alterando igualmente o estatuto e competências do Ministro da República.
Especificamente as revisões de 1997 e 2004 vieram modificar os poderes constitucionais do Ministro da República.
A revisão de 1997 veio aproximar o cargo do Presidente da República, suprimir o essencial dos seus poderes governamentais, deixando de ter assento no Conselho de Ministros. As competências administrativas que lhe eram atribuídas passaram a depender de delegação do governo, apenas podendo ser exercidas de forma não permanente.
III – Situação Atual – Competências do Representante da República
Em 2004 foi, por sua vez, criado o cargo de Representante da República, que substituiu o de Ministro da República, com competências políticas e responsável exclusivamente perante o Presidente da República.
A revisão de 2004 operou, por outro lado, a supressão total dos poderes administrativos do anterior Ministro da República.
O Governo Regional passou a tomar posse perante a Assembleia Legislativa da Região, anteriormente designada Assembleia Regional.
A partir de 2004, o Representante da República, é configurado como titular de cargo político, residente, com competências no âmbito do funcionamento do sistema do Governo Regional e com funções de representação do Estado e de controlo normativo dos atos legislativos dos órgãos de governo regionais.
No plano protocolar, o Representante da República continua a ter o “rank” de Ministro, tem precedência sobre todas as entidades regionais e nacionais nas cerimónias civis e militares que tenham lugar na respetiva Região, que cede quando estiverem presentes o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República ou o Primeiro-ministro.
As principais competências atuais do Representante da República, resumem-se às seguintes:
1 – Função simbólica de representação da soberania do Estado, da unidade da Nação e do todo nacional, do qual fazem naturalmente parte os Açores;
2 – Controle normativo dos diplomas legislativos e regulamentares dos órgãos de poder regionais através do exercício do direito de veto e fiscalização da constitucionalidade e legalidade dos referidos diplomas;
3 – Nomeação do Presidente do Governo Regional e dos restantes membros do Governo Regional;
O Representante da República participa ainda nos seguintes órgãos consultivos: Conselho Superior de Defesa Nacional, presidido pelo Presidente da República e Conselho Superior de Segurança Interna, presidido pelo Primeiro-ministro, nas reuniões que tratem de assuntos de interesse para a respetiva região autónoma.
É-lhe ainda atribuída competência para assegurar a execução da declaração do estado de sítio e do estado de emergência, em cooperação com o Governo Regional, como foi o caso durante a crise da COVID-19.
Tem ainda algumas competências, atribuídas pela legislação eleitoral.
As revisões constitucionais que referi, inserem-se num processo de aprofundamento progressivo das autonomias regionais e no alargamento dos poderes legislativos e executivos dos órgãos de governo próprio das Regiões.
Mas foi a revisão de 2004 que veio introduzir uma verdadeira revolução alterando o âmbito das competências dos órgãos de governo próprio, a organização do sistema político regional e o enquadramento das relações entre as regiões autónomas e a República.
Foram eliminados os conceitos de “interesse específico” e “lei geral da República”.
O conceito chave passou a ser o “âmbito regional”.
A Região passou a legislar no âmbito regional, em qualquer das matérias enunciadas no Estatuto Político-Administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania.
As regiões passaram a ter a faculdade de transpor diretivas comunitárias.
O regime de dissolução dos órgãos de governo próprio foi alterado, consagrando-se o poder do Presidente da República de dissolução da Assembleia Legislativa, num regime semelhante ao da Assembleia da República.
A dissolução da Assembleia Legislativa acarreta a queda do Governo Regional, reforçando-se a responsabilidade política exclusiva perante a Assembleia Legislativa e a componente parlamentar do sistema político regional.
Foi consagrada a possibilidade de delegação de competências do Governo da República no Governo Regional, bem como o estabelecimento de outras formas de cooperação.
Podemos dizer que os Açores gozam, hoje, de uma considerável e razoável autonomia, ao mesmo tempo assegurada e delimitada pelo quadro legal definido pela Constituição, Estatuto Político-Administrativo e Lei das Finanças das Regiões Autónomas.
Essa autonomia estende-se aos planos político, legislativo, administrativo, financeiro e patrimonial.
É-lhes por outro lado reconhecido o direito de participação na definição das políticas nacionais sempre que os respetivos interesses estejam em jogo, bem como de participação nas negociações internacionais e no processo de construção europeia, quando estejam em causa matérias que lhes digam respeito.
IV – Representação do Estado
Durante os meus 3 mandatos tenho presidido todos os anos às comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que se têm realizado nos Açores e proposto ao Presidente da República a atribuição de condecorações a cidadãos e instituições que se destacaram pelos seus méritos e pela sua ação, honrando os Açores e Portugal.
Todos os anos para além do Dia Nacional é comemorado nos Açores o Dia da Região que tem lugar, na primeira segunda-feira após a festa religiosa do Pentecostes, rotativamente num dos municípios do arquipélago, em que são atribuídas, pela Assembleia Legislativa, insígnias a personalidades e instituições com uma relação aos Açores.
Este ano o Dia da Região terá lugar na Praia da Vitória, no dia 9 de junho, tendo, no dia seguinte, lugar o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Angra do Heroísmo.
Tenho presidido ou participado nos atos públicos organizados pelas autoridades nacionais que atuam na Região, bem como pelas autoridades regionais, e acompanhado as visitas do Presidente da República e do Presidente da Assembleia da República à Região.
Tenho proferido conferências sobre temas relevantes da vida nacional e regional e dirigido mensagens de Ano Novo aos açorianos, cujos textos constam do “site” do Representante da República, onde estão também todas as minhas intervenções públicas.
Além disso recebo os embaixadores acreditados em Lisboa nas suas visitas oficiais à Região e coordeno os seus contactos com as autoridades regionais.
Toda esta atividade é feita dentro do estrito respeito pelas competências dos órgãos de poder regional e da sua ampla latitude em assumirem as suas responsabilidades quanto ao autogoverno da Região.
Tenho procurado exercer as minhas competências com prudência e ponderação, procurando manter um relacionamento cordial com as autoridades regionais, evitando imiscuir-me nos assuntos da competência dos órgãos de governo próprio da Região ou envolver-me em debates que possam influenciar a vida político-partidária regional.
Tenho defendido e incentivado, por outro lado, um relacionamento correto e amistoso entre os órgãos da República e os órgãos regionais e um diálogo e consulta permanentes entre os mesmos.
Sempre que solicitados os meus bons ofícios para facilitar a solução de questões do interesse dos Açores, seja por parte do Governo Regional, seja por parte das Autarquias ou outras Instituições, tenho procurado ajudar na medida das minhas possibilidades.
V – Fiscalização da Constitucionalidade e Legalidade dos diplomas legislativos e regulamentares emanados da Assembleia Legislativa e do Governo Regional
Nos 5 anos do meu primeiro mandato promulguei 136 decretos legislativos regionais e 103 decretos regulamentares regionais, num total de 239 diplomas. Usei do meu veto político devolvendo os diplomas à Assembleia Legislativa por 3 vezes, em agosto de 2011, março de 2012 e abril de 2014.
Nas três vezes a Assembleia Legislativa acolheu a minha argumentação, aceitando as minhas recomendações.
Solicitei, por outro lado, ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva de 3 diplomas, respetivamente em junho de 2013, outubro de 2013 e dezembro de 2015.
Nos 2 primeiros casos o Tribunal Constitucional deu razão aos meus pedidos, pronunciando-se pela inconstitucionalidade dos diplomas em causa. No terceiro caso, o Tribunal Constitucional decidiu, com o voto contrário de 3 dos seus membros, não se pronunciar sobre a inconstitucionalidade da norma posta por mim em causa.
Finalmente solicitei a fiscalização abstrata e sucessiva, em junho de 2012, da ilegalidade de um decreto legislativo regional, por violação do Estatuto Político-Administrativo da Região, que mereceu a condordância do Tribunal Constitucional.
No segundo mandato promulguei 103 decretos legislativos regionais e 68 decretos regulamentares regionais, num total de 171 diplomas.
Exerci uma vez o veto político, devolvendo um diploma à Assembleia Legislativa, solicitando uma nova apreciação do mesmo, em junho de 2019, pedido esse que foi aceite.
No atual mandato, promulguei até ao final de 2024, 122 decretos legislativos regionais e 115 decretos regulamentares regionais.
Exerci o veto político devolvendo à Assembleia Legislativa, 3 diplomas.
Um, em 2021, foi confirmado pela Assembleia Legislativa sem alterações, tendo sido assinado e enviado para publicação, outro, em 2022, não foi confirmado pela Assembleia Legislativa, tendo sido rejeitado, conforme parecer da Comissão de Assuntos Sociais e o terceiro, também em 2022, veio a ser reapreciado, tendo a Assembleia Legislativa acatado as questões por mim levantadas.
Também em 2022, requeri ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de duas normas de um decreto da Assembleia Legislativa, tendo o mesmo tribunal declarado a inconstitucionalidade dessas normas. Vetei o diploma por inconstitucionalidade, tendo a Assembleia expurgado as normas declaradas inconstitucionais, enviando-o novamente para promulgação.
Devo dizer que em todo o período em que venho desempenhando o meu cargo, tem havido uma excelente colaboração com a Assembleia Legislativa e com o Governo Regional, procurando-se proceder a uma análise e escrutínio de conteúdo formal dos diplomas, o que muito tem contribuído para a correção dos respetivos textos legais. Esse bom entendimento tem feito com que o recurso, quer ao veto político, quer ao veto por ilegalidade/inconstitucionalidade seja residual.
Em praticamente 14 anos, apenas exerci o veto político por 7 vezes e a fiscalização preventiva da ilegalidade/constitucionalidade apenas foi requerida 5 vezes.
VI – Nomeação do Presidente do Governo Regional e dos Secretários Regionais
Desde que assumi as minhas funções, em 2011, tiveram lugar 4 eleições legislativas regionais, respetivamente em outubro de 2012, outubro de 2016, outubro de 2020 e fevereiro de 2024.
O art.º 231.º, n.º 3, da Constituição determina que o Governo Regional é politicamente responsável perante a Assembleia Legislativa e o seu Presidente é nomeado pelo Representante da República tendo em conta os resultados eleitorais.
Por seu lado, o Estatuto Político-Administrativo dispõe no art.º 81, n.º 1, que o Presidente do Governo Regional é nomeado pelo Representante da República tendo em conta os resultados das eleições para a Assembleia Legislativa, ouvidos os partidos nela representados.
Daqui resulta que, quando houver uma maioria absoluta de um dos partidos, o Representante da República não tem mais do que ouvir os partidos como mera formalidade e nomear o líder do partido com maioria absoluta na Assembleia Legislativa.
Foi o que sucedeu nas eleições de 2012 e 2016, em que o Partido Socialista teve maiorias absolutas e na sequência das quais indigitei o Dr. Vasco Cordeiro, líder do PS, como Presidente do Governo Regional.
Em 2012, estava pela primeira vez em vigor a disposição do Estatuto (art.º 105) que determina que “o Presidente do Governo Regional só pode ser nomeado para três mandatos consecutivos”.
Ora esta disposição entrou em vigor em 2009 já depois de o então titular do cargo de Presidente do Governo Regional, Sr. Carlos César, se encontrar no quarto mandato e pôs-se a questão de saber se a referida disposição deveria aplicar-se retroativamente abrangendo os mandatos anteriores à sua vigência.
A questão foi tratada com tato e prudência, tendo havido o cuidado da minha parte de deixar ao próprio o tempo e o modo de encontrar uma solução.
Honra lhe seja feita, o Sr. Carlos César, num ato de coerência política e ética, decidiu não se recandidatar nas novas eleições.
Nas eleições de 25 de outubro de 2020 o quadro parlamentar que delas resultou alterou-se substancialmente sem que qualquer partido tenha tido maioria absoluta.
Entendi que a minha atuação deveria ser orientada dentro dos seguintes parâmetros:
1 – Ter em conta os resultados eleitorais;
2 – Ouvir os partidos políticos com representação na Assembleia Legislativa;
3 – Avaliar com objetividade as perspetivas de estabilidade das soluções governativas apresentadas;
4 – Respeitar o papel dos partidos políticos quanto à promoção de acordos ou soluções governativas particulares;
5 – Respeitar a competência da AL, única entidade de que depende a viabilização do Programa de Governo.
O PS, Partido mais votado (25 mandatos), não apresentou qualquer coligação nem celebrou quaisquer acordos de incidência parlamentar.
O PSD (21 mandatos) formou uma coligação com o CDS e com o PPM (total 26 mandatos) e obteve o compromisso escrito de um apoio parlamentar estável por parte do CHEGA e da IL (total 29 mandatos representando uma maioria absoluta).
Todos os partidos apoiando a Coligação declararam que votariam contra um eventual Programa apresentado pelo PS.
Tendo em conta os resultados eleitorais e os compromissos assumidos no decurso da audição dos partidos, indigitei o Dr. José Manuel Bolieiro, líder do PSD e da Coligação PSD-CDS-PPM.
Após 3 anos de governação, em março de 2023, a IL e o Deputado Independente anunciaram o fim de o seu apoio parlamentar que levou à rejeição da proposta de Orçamento do Governo.
Não se afigurando possível a aprovação de qualquer proposta alternativa, o PR dissolveu a AL e convocou novas eleições, que tiveram lugar em fevereiro de 2024.
Desta vez a coligação pré-eleitoral PSD-CDS-PPM obteve uma maioria relativa (26 mandatos) tendo os restantes partidos, com exceção do PS e do BE, manifestado abertura quanto à viabilização do Programa de Governo.
Indigitei de novo o Dr. José Manuel Bolieiro.
O Programa de Governo e o Orçamento para 2025 foram aprovados pela AL, continuando a Coligação a governar com base na sua maioria relativa.
Autonomia / Unidade do Estado
Algumas palavras sobre a autonomia versus unidade do Estado.
Sem querer ser demasiado filosófico, estamos perante uma dualidade que não encerra qualquer antagonismo. São como o corpo e a alma, existem conjuntamente e completam-se mutuamente.
A autonomia dos Açores está consagrada na Constituição e especificada no Estatuto Político-Administrativo da Região.
Constitui, juntamente com a unidade do Estado, um limite material da revisão constitucional.
A autonomia dos Açores integra-se e está consolidada no quadro do regime democrático português.
Unidade do Estado e Autonomia da Região coexistem e são perfeitamente conciliáveis.
Mais do que isso, baseiam-se em princípios que não são questionados e que são, em ambos os níveis, geradores de estabilidade e confiança, mobilizadores de energias e congregadores de esforços comuns e solidários.
Unidade de Estado e Autonomia da Região, em minha opinião, reforçam-se mutuamente, dando ao mesmo tempo força, quer ao todo que é Portugal, quer à parte que são os Açores.
Quanto à concretização dos princípios e à sua conciliação no plano dos factos ela exigirá sempre por parte das instituições e dos órgãos políticos da nação, quer a nível nacional, quer a nível regional, uma boa compreensão das balizas estabelecidas pelo quadro constitucional vigente, bem como das exigências das situações concretas e que, além disso, exista um espírito de diálogo e cooperação que permita uma harmonização correta, justa e equitativa de todos os fatores em jogo.
Julgo que não tem havido entraves resultantes da unidade do Estado e que a autonomia da Região tem tido um curso natural dentro dos parâmetros constitucionais.
Uma opinião contrária teria que ser sustentada com casos concretos que teriam que ser analisados com objetividade, de que pessoalmente não tenho conhecimento.
A autonomia dos Açores é fruto da sua identidade histórico-cultural e representa um esforço sincero de descentralização político-administrativa através da assunção pelos açorianos das suas próprias responsabilidades.
Tem constituído uma força motriz de desenvolvimento e trazido aos açorianos confiança no seu futuro.
Como não podia deixar de ser, apoio e reconheço o sucesso da autonomia e tiro daí consequências no exercício das minhas funções.
A autonomia faz no próximo ano 50 anos e é extraordinária a transformação dos Açores durante esse período.
O desenvolvimento social e económico, as infraestruturas, os serviços, as perspetivas de futuro nada têm a ver com a sociedade rural, arcaica dos tempos passados.
Mas o sucesso de que falo não se deve exclusivamente à autonomia. É justo reconhecer a contribuição dada pelo todo nacional e por uma integração da responsabilidade da República, atenta ao princípio constitucional da solidariedade entre todos os portugueses.
Há que reconhecer, ainda, o papel dos fundos europeus para a coesão social.
Os Açores não seriam o que são hoje sem a combinação de todos estes fatores.
Mas note-se, a autonomia não é um processo estático numa sociedade que está permanentemente em evolução.
O próprio Estatuto Político-Administrativo dos Açores diz no seu artigo 14.º que o processo de autonomia regional é de aprofundamento gradual e dinâmico.
Esse aprofundamento deve ser feito sobretudo através do seu exercício, aproveitando todo o potencial que o quadro constitucional vigente oferece. Tudo aquilo que possa promover o desenvolvimento económico-social e a autossuficiência, que reforce a participação, cooperação e coordenação de cada ilha no todo regional e uma maior participação democrática dos cidadãos na vida política da Região, deve ser inscrito na agenda das entidades que se ocupam da problemática da autonomia.
A autonomia é inseparável do desenvolvimento que deverá ser sempre o foco principal da atenção dos governantes.
Caberá aos açorianos fazer as opções que melhor entenderem, mas será importante que o façam na base de um bom entendimento e cooperação com as instâncias da República dentro do espírito da própria Constituição quando diz que a autonomia das regiões visa o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses.
Em resumo e conclusão: a autonomia dos Açores, consagrada na Constituição de 1976 e aprofundada através de diversas revisões constitucionais, está hoje, bem institucionalizada, tem tido resultados muito benéficos para a Região e para o país e é aceite e apoiada por todos.
Essa autonomia tem contado com uma integração que se verifica em diversos sectores com uma regulação que abrange e se estende a todo o território nacional.
Mas a autonomia que se traduz no autogoverno da Região tem sido respeitada de um modo geral numa base de diálogo e consulta que, na minha opinião, devem ser reforçados.
A finalizar, salientarei que existem evidentemente assuntos em agenda e dos quais me permito citar, sem a preocupação de ser exaustivo, as questões relativas ao mar, a Lei das Finanças Regionais e a participação de Presidente do Governo Regional em reuniões do Conselho de Ministros.
A figura do Representante da República
O Representante da República, que sucedeu à figura do Ministro da República, designação do cargo até 2004, deixou, como eu referi, de ter funções executivas e de coordenação dos serviços do Estado na Região.
Atualmente tem um papel mais limitado, mas igualmente importante.
Por um lado, tem uma função de representação, com um valor simbólico, que não compete com os órgãos de poder regional, nem limita as suas competências.
Existe para marcar, de uma forma permanente e próxima da população uma presença da República Portuguesa, do todo nacional, de que os Açores fazem parte.
A sua existência, consagrada na Constituição e a sua nomeação pelo Presidente da República, que lhe concede legitimidade democrática, só pode contribuir para a dignidade das instituições políticas da Região, assinalando a dimensão nacional que deve estar sempre presente no seu espírito e na sua ação.
O Representante da República tem igualmente a importante função de nomear o Presidente do Governo Regional e os Secretários Regionais, em função dos resultados eleitorais.
Para isso é um juiz imparcial e independente que se situa fora dos partidos.
Finalmente tem a missão de fiscalizar a função legislativa da Assembleia Legislativa e regulamentar do Governo Regional, assegurando a conformidade dos diplomas com a Constituição e o Estatuto Político-Administrativo.
Esta, como as anteriores referidas é uma função importantíssima, que garante a existência de uma sociedade respeitadora da lei e a proteção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais.
Não obstante as considerações precedentes, o cargo de Representante da República tem sido questionado pela maioria dos partidos políticos parlamentares.
Essa posição terá tido alguma explicação no facto de, quando o regime autonómico foi estabelecido pela Constituição de 1976, haver competências concorrentes entre o Governo Regional e o Ministro da República e entre a Assembleia Legislativa e a Assembleia da República que foram evoluindo através de sucessivas revisões constitucionais que vieram reforçar o grau da autonomia.
Não quer isto dizer que o objetivo da estrutura existente não tivesse em vista a boa governação da Região, apenas que o grau de autonomia tinha limitações que os açorianos consideravam, justificadamente, que era tempo de serem removidas.
Atualmente o Representante da República, para além das suas funções de representação, de carácter sobretudo simbólico, em que procura dignificar e prestigiar a Região e reforçar os laços entre as diferentes partes do todo nacional, tem funções bem definidas relativas à fiscalização da constitucionalidade e legalidade dos diplomas emanados das instâncias regionais.
As competências do Representante da República, hoje, não concorrem com as dos órgãos de governo próprio da Região, não interferem, nem limitam os poderes destes últimos tal como definidos pela Constituição.
Essas competências integram-se num quadro jurídico definido pela Constituição, procurando conciliar o princípio de um Estado unitário com o regime autonómico da Região.
Vivemos afortunadamente num Estado democrático, em que as instituições funcionam com pesos e contrapesos, que garantem uma governação que não contrarie os direitos fundamentais dos cidadãos e que prossiga o bem comum no respeito pela Constituição e pelas leis em geral.
O Representante da República não é, aliás, o único órgão emanado da República com funções de fiscalização ou de outra natureza. A Secção Regional do Tribunal de Contas, por exemplo, desempenha também um papel importante no controle da governação da Região, sem que isso interfira na autonomia.
São ambos órgãos independentes, que só contribuem para uma legitimação e reforço da autonomia no quadro da Constituição.
Devo, para finalizar este ponto, sublinhar que a Constituição atribui ao Representante da República um conjunto de competências específicas que, numa democracia e num estado de direito, têm impreterivelmente de existir e ser desempenhadas por uma entidade independente e exterior ao sistema de órgãos de governo próprio. O facto de essa entidade ter sede no território da Região -e não no Continente- é, do meu ponto de vista, uma mais-valia importante, se não mesmo uma exigência do princípio autonómico.
Isto não quer dizer que adote uma posição dogmática e que não esteja aberto a ouvir ideias alternativas e a ponderar argumentos contrários, sobretudo quando resultarem de um estudo aprofundado e objetivo destas questões.
De qualquer forma, este é um assunto que cai na competência exclusiva da Assembleia da República e não me cabe a mim desencadear qualquer debate público sobre a matéria.
Pedro Catarino
Embaixador Jubilado
Representante da República para a Região Autónoma dos Açores