GABINETE DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA
PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES
SOLAR DA MADRE DE DEUS
ANGRA DO HEROÍSMO
“Speaking notes” para uma palestra sobre a China a um grupo de “CEO's”
Obrigado pelo convite
Felicito-vos por esta boa prática de se reunirem regularmente numa convivência saudável, instrutiva e agradável.
Espero que a minha participação se traduza num contributo positivo.
Como o Dr. João Alves disse na sua amável e generosa apresentação passei catorze anos da minha carreira profissional na China ou a tratar de assuntos da China.
Um dos meus hobbys é formar uma biblioteca sobre a China a que tenho dedicado boa parte da minha vida e do meu tempo, biblioteca essa que me faz companhia a todo o tempo e que disfruto com imenso prazer.
Mas já deixei a China há catorze anos e o serviço diplomático há dez anos.
Tenho continuado no entanto sempre no serviço público a tempo inteiro.
Atualmente, sou Representante da República para os Açores, onde resido habitualmente.
Curiosamente já dei nos Açores na Ilha Terceira as Boas Vindas na qualidade de Representante da República a dois Primeiros Ministros chineses Wen Jiabao em 2012 e Li Keqiang este ano e ao Presidente Xi Jinping em 2014.
Por alguma razão eles têm escolhido território português para fazerem escala.
A minha intervenção será mais um testemunho pessoal baseado nas minhas experiências do que uma análise conceptual.
Será assim mais fácil formularem as vossas perguntas relacionando-as com o meu conhecimento direto da realidade.
A vossa escolha do tema CHINA não podia ser mais atual e oportuna.
A China tornou-se nos últimos vinte anos na segunda economia mundial, assumindo-se no campo dos seus desígnios, mas também dos factos como uma potência global.
É um facto novo, na sua longa história.
A China foi através dos séculos um país tradicionalmente fechado sobre si mesmo, afirmando-se como potência asiática e cuidando sobretudo de garantir a segurança das suas fronteiras e o seu modo de viver.
Apenas num curto período da sua História se assumiu como líder dos países em desenvolvimento e de uma luta ideológica contra o imperialismo e o colonialismo.
Foram os anos 50 e 60 do século passado, com o advento do regime comunista e com a Revolução Cultural.
Hoje na linha do pensamento de Deng Xiaoping, segundo o qual sempre que a China se isolou, enfraqueceu-se, debilitou-se economicamente e tornou-se mais vulnerável.
A política interna e externa da China orienta-se por dois objectivos fundamentais:
- Modernização e fortalecimento do país em todos os sectores - político, económico, tenológico, científico, de defesa, etc.
- Elevação do nível de vida dos chineses – retirando da pobreza, em muitos casos extrema, milhões dos seus cidadãos.
Para isso a China precisa de garantir a estabilidade política e social mantendo o papel estruturante do partido comunista e de um socialismo de estado combinando-o com uma economia de mercado de base capitalista.
É o princípio de que o capitalismo deverá servir o socialismo.
É o chamado socialismo com características chinesas.
Os chineses têm bem no seu espírito o colapso e desintegração da União Soviética e não querem cair no mesmo erro.
A reforma económica deverá, segundo eles, preceder a reforma política.
Precisa por outro lado de relações normais com as grandes potências a começar com os Estados Unidos da América, mas também com o Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Rússia.
Só com relações normais conseguirá assegurar um crescimento económico sustentável que conduza a um fortalecimento progressivo do país.
A China tem procurado por outro lado uma regularização dos problemas de fronteira com os seus vizinhos (tem fronteiras terrestres com catorze países) e uma expansão progressiva em todos os continentes na linha da potência global a que aspira.
Precisa ainda de manter a coesão e tranquilidade social tendo em atenção a dimensão, população e diferenças de etnias e nacionalidades.
Para isso precisa de manter um crescimento na ordem ou acima dos 7%, e de progressivamente diminuir as desigualdades entre as zonas costeiras e as zonas do interior.
Precisa igualmente de promover um nacionalismo que congregue as massas e as mantenha mobilizadas e unidas.
Neste sentido a integridade territorial e a reunificação da Pátria com a integração de Taiwan, são um desígnio nacional e prioritário e permanente.
No mesmo contexto da coesão social, a luta contra a corrupção e os crimes económicos deverá ser conjuntamente com os resultados da economia e na linha do pensamento confuciano, um dos padrões para a aferição da legitimidade dos governantes.
Estas são na minha opinião as grandes coordenadas que influenciam, determinam e explicam todos os outros aspectos das políticas chinesas.
Julgo que será interessante dar-vos uma ideia do meu percurso profissional que me permitiu observar a evolução da China nos tempos modernos, importante para se compreender os dias de hoje.
Cheguei pela primeira vez ao Oriente, em 1970 a Macau, onde estive cerca de dois anos.
Ali fiz o meu serviço militar no Serviço de Informações do Quartel General e ali pratiquei a advocacia, o que me permitiu um contacto mais direto com a população local, nomeadamente a chinesa.
O auge da Revolução Cultural já tinha passado e já se sentiam alguns sinais de um regresso a uma normalidade institucional interrompida para que a revolução proletária não fosse desvirtuada e a sociedade não se aburguesasse.
Foi o tempo da diplomacia do ping-pong e da visita de Nixon à China.
O país fora devastado por uma onda de insanidade, um delírio virulento, que liquidou a maior parte das classes intelectuais e quadros e só não destruiu completamente o país, em virtude da sua dimensão e da resiliência do povo chinês.
Foi um período complexo de luta pelo poder mas também de uma tentativa utópica de destruição dos valores tradicionais da cultura chinesa e de criação de uma nova sociedade, baseada num novo indivíduo.
Como se isso fosse possível e como fosse possível num país como a China abolir o passado!
O abalo foi grande e o sofrimento do povo chinês enorme.
A China continuava um país rural, atrasado e pobre, num grau inimaginável para um europeu.
O rendimento per capita não ultrapassava os 40 dólares.
A produção de cereais por habitante tinha baixado para um nível inferior ao de 1957.
Como estávamos longe dos templos gloriosos da dinastia TANG!
Quanto a Macau depois do sobressalto em 1966/67 e das humilhações sofridas pela Administração Portuguesa, a vida tinha voltado à sua placidez tradicional.
Macau caíra num torpor lânguido e debilitado, numa estagnação deliberada e desprovida de ambição, com uma governação sem qualidade nem grandeza, incapaz de atrair gente de qualidade moral e profissional.
A Administração, exercício nominal, era responsabilidade dos portugueses.
Os negócios pertenciam aos chineses.
E assim se vivia à espera de melhores dias.
O contraste com Hong Kong era gritante.
A sensação que se tinha em Macau é que se vivia no passado. O que não deixava de ter o seu charme.
Hong Kong era o futuro, o progresso, o dinheiro.
Tudo se movia. Já nessa altura Hong Kong era a única porta aberta da China para o mundo.
Voltei em 1979, como Cônsul Geral em Hong Kong.
Em 1976, tinham morrido Chou Enlai e Mao Tsé-Tung.
Deng assumira as rédeas do poder e iniciara uma segunda revolução em sentido contrário.
Era preciso abrir o país, aprender com os outros países mais avançados, importar capitais e tecnologias, reformar as mentalidades.
“Não interessa se o gato é branco ou preto, o que interessa é que cace ratos.” “Enriquecer é glorioso”.” Deve procurar-se a verdade nos factos”.
Tudo passou a ser possível.
Mantinha-se contudo, o controle do partido e o socialismo.
Era preciso evitar o caos.
A estabilidade era condição do progresso.
Progresso que não voltou a parar, se exceptuarmos o abrandamento passageiro com os acontecimentos de Tiananmen, em junho de 1989.
Enquanto estive em Hong Kong o boom foi extraordinário.
A bolsa explodiu.
O imobiliário atingiu níveis inimagináveis.
Estavam assim criadas as condições para se iniciar o processo de reversão de Hong Kong e Macau.
Uma nova Constituição previu o estabelecimento de regiões administrativas especiais com sistema capitalista e livre mercado.
Foram criadas por outro lado zonas económicas especiais, nomeadamente adjacentes a Hong Kong e Macau.
Em Setembro de 1982, a Sra. Thatcher faz uma visita a Pequim e com todo o seu fulgor e ânimo, fortalecido pela vitória das Maldivas defende a validade dos tratados internacionais e recebe da parte de Deng Xiaoping como resposta seca: “com negociações ou sem negociações, a China retomará a soberania e administração de Hong Kong em 1 de Julho de 1997.”
Quanto a Macau, beneficiou é claro do “overspill” do boom de Hong Kong e do desenvolvimento económico da província de Guangdong.
Mas continuávamos a viver a um ritmo demasiado lento, em comparação com o ritmo explosivo à sua volta.
Vivíamos demasiado virados para os equilíbrios interstícios de Macau e Lisboa, sem uma estratégia decisiva e ambiciosa, virada para o futuro.
Mesmo assim, eram visíveis as melhorias mais por efeito de tabela que por iniciativa própria.
Voltei em Julho de 1989, um mês depois dos acontecimentos de Tiananmen, para assumir a chefia da parte portuguesa do Grupo de Ligação Conjunto (GLC) que após a assinatura da Declaração Conjunta (DC) fez durante o período de transição (doze anos) a monitorização da implementação da DC.
O processo de Macau, comparativamente com o de Hong Kong, foi muito mais consensual e harmonioso.
Não suspendemos os trabalhos como os ingleses após Tiananmen, nem tivemos as controvérsias e desavenças que o processo de Hong Kong provocou.
Assumimos uma posição realista perante a inevitabilidade da reversão de Macau e o curso inelutável da História.
Não vou discorrer sobre o desenlace das negociações.
Foi para mim uma experiência interessantíssima, cheia de ensinamentos e desafios.
Criou-se espaço para que o Governo de Macau pudesse desenvolver a sua ação e aproveitar bem os doze anos do período de transição.
Desenvolvemos uma boa base para o futuro e para a sustentabilidade de Macau como região autónoma com um sistema político, económico e social diferenciado do da China.
Salvaguardámos os direitos e modo de viver da população e a estabilidade e prosperidade do Território.
Cumprimos enfim o nosso papel histórico, preservando a dignidade do nosso país e reforçando a nossa relação com a China.
A China por seu lado, alcançava os seus objectivos estratégicos, estabelecendo um novo patamar para a reunificação da Mãe-Pátria com a integração de Taiwan.
Tudo decorreu de forma ordenada, ao contrário das outras descolonizações.
No último período da nossa Administração houve um ressurgimento dos interesses empresariais portugueses, nem sempre, contudo infelizmente, numa perspetiva de longo prazo.
Da estrutura que deixámos de pé, gostaria de destacar dois aspetos que me parecem de especial importância:
- A língua portuguesa como língua oficial
- Um sistema de direito de matriz portuguesa
Representam ambos para nós vantagens competitivas inestimáveis.
Temos hoje em Macau uma advocacia de negócios florescente que é para nós um trunfo precioso.
Servi, finalmente, de Abril de 1997 a Setembro de 2002 como Embaixador em Pequim.
Deng Xiaoping tinha morrido em fevereiro de 1997 e estávamos num novo ciclo, com uma terceira geração de dirigentes políticos, com Jiang Zemin, Li Peng e Zhu Rongji.
Depois do abrandamento na sequência dos acontecimentos de Tiananmen, o crescimento retomara de novo taxas na ordem dos 9/10 %.
Em julho de 1997, deu-se o retorno de Hong Kong, a que tive o privilégio de assistir e que deu ocasião em Pequim a grandes manifestações de regozijo.
Em outubro de 1999, a RPC comemorou cinquenta anos com grande júbilo. oito dias depois a Orquestra Gulbenkian tocava a 9ª Sinfonia de Beethoven no Grande Palácio do Povo, com um impressionante coro chinês. Uma grande ocasião.
Em dezembro, foi o retorno de Macau.
Em 2001, a China aderia à OMC.
Tinha entretanto ganho a competição para a Organização dos Jogos Olímpicos em 2008 e para a Exposição Universal em Xangai, em 2010.
As relações entre Portugal e a China foram dominadas pela questão de Macau, de importância estratégica para a China.
Os chineses reagiram com reconhecimento à forma harmoniosa como o processo de Macau decorreu e à nossa boa cooperação, em contraste com o processo de Hong Kong.
Apreciaram também a forma ordenada e competente da nossa administração de Macau, sob a liderança do Governador, General Rocha Vieira.
Ao nível político, as nossas relações com a China mantiveram-se num nível elevado e atravessaram um período de excelência.
A China apoiou a nossa candidatura vencedora ao CSNU, em 1996.
Tiveram lugar numerosas visitas políticas ao mais alto nível nos dois sentidos.
Ao nível económico, no entanto, os resultados concretos foram muito reduzidos.
A nossa ação no terreno foi limitada, por escassez de recursos, organização deficiente e falta de interesse e de espírito empreendedor dos nossos empresários virados para outras prioridades.
Temos que reconhecer, no entanto, que as condições do mercado chinês eram difíceis.
A distância, a língua, as diferenças culturais, os problemas ligados à propriedade intelectual, um sistema judicial sem garantias apropriadas, a ausência de regras claras sobre o funcionamento do mercado sem distinção nítida entre o público e o privado.
Tudo isto exigia um conhecimento que era então muito limitado por parte dos empresários, e também investimentos avultados e com retornos não imediatos envolvendo riscos consideráveis.
Acrescente-se a grande concorrência.
A máquina administrativa de apoio aos empresários sofria por seu lado de inércia e falta de iniciativa devido ao fraco apoio da capital e aos seus meios muito reduzidos.
Um dia o delegado do ICEP veio queixar-se que o seu orçamento previa para ações de formação uma verba de zero euros.
Discutimos o assunto e chegámos à conclusão que a única hipótese era a utilização da Embaixada para ações organizadas e custeadas pelos parceiros chineses de empresas portuguesas.
Fizemos assim duas ações que tiveram, julgo, algum êxito.
Uma para promoção da Amorim Cortiças e outra para promoção dos vinhos da Sogrape.
Devo dizer que a Embaixada que foi comprada e inaugurada no meu tempo, era e é excelente.
Antiga residência do Embaixador do Japão tem condições óptimas, quer no que diz respeito ao edifício onde estão instalados os serviços, nomeadamente do ICEP, quer quanto ao espaço para eventos sociais.
Outro problema era a deficiente preparação das missões.
Mesmo ao nível mais elevado.
Pego por exemplo na visita do Primeiro Ministro António Guterres que se fez acompanhar por sete ministros, secretários de estado e por uma importante delegação de empresários.
A preparação foi quase inexistente.
Os empresários estavam mais interessados em aproveitarem a longa viagem para fazerem lobbying junto do Primeiro Ministro e dos ministros sobre assuntos que nada tinham a ver com a China.
A visita foi um sucesso do ponto de vista político, mas os resultados do ponto de vista empresarial muito limitados.
Não resisto a contar-vos o que se passou quanto à preparação em Pequim da visita.
Cerca de duas ou três semanas antes da visita, o delegado do ICEP entra-me no gabinete e diz-me:
Estou com um problema grave.
Despedi há dias a minha secretária chinesa.
E ela não fez mais nada., no seu último dia de trabalho apagou-me tudo o que tinha no computador, nomeadamente a “mailing list”.
Não sei pois o que fazer para o encontro previsto do Primeiro Ministro Guterres com empresários chineses.
É claro que o problema ficou resolvido com a “mailing list” da Embaixada e porque os chineses com a sua capacidade de mobilização conseguem encher quantas salas quisermos com pessoas de qualquer segmento da sociedade e com o mínimo de antecedência.
Nos primeiros quinze anos deste século continuou a explosão da China, a sua emergência pacífica como potência global.
O seu fortalecimento gradual levará a que se vá impondo pela sua força e poder, sem necessidade de conflitos armados. É esta a sua filosofia que se reflete na política.
Não vou discorrer sobre os dados estatísticos da produção industrial, das exportações, do investimento, dos níveis de consumo interno, etc.
Os números, que conhecem melhor do que eu, são impressionantes.
Traduzem o chamado “milagre da China” que nenhum país pode ignorar.
As oportunidades geradas por este fenómeno são imensas, como são imensos os desafios e a concorrência que ele implica.
Vou limitar-me a referir os aspetos que mais diretamente nos tocam.
Primeiro a atitude da China em relação a Macau.
Era considerado como um problema fundamental para a China ligado à sua soberania e integridade territorial.
Era também um objectivo estratégico ligado à reunificação da China e integração de Taiwan.
Foi assim um factor decisivo para o estabelecimento das relações diplomáticas com o nosso país em 1979.
O processo de reversão dominou e foi o ponto fulcral do nosso relacionamento bilateral até à sua consumação, em dezembro de 1999.
O processo foi um sucesso, e Macau, agora RAEM tem-se desenvolvido com uma vida própria e uma autonomia preservando a herança que deixámos.
Com o desenvolvimento exponencial da China e da província de Guangdong, com o fim do monopólio do jogo e a concessão de novas licenças e com o aumento de visitantes, Macau tem vindo a atravessar um período de grande prosperidade.
Sem movimentos independentistas relevantes e grupos de pressão políticos significativos a fórmula “um país dois sistemas” teve consagração pacífica e tranquila.
Temia-se a chinezisação do território e a sua submersão no mundo chinês e consequente descaraterização. O que não sucedeu.
Curiosamente foi o próprio Governo Central da RPC que numa atitude de grande pragmatismo e visão utilitária viu que Macau podia ter uma significativa funcionalidade para os seus interesses estratégicos com benefícios quer para a RAEM, quer para a China, se preservasse a sua identidade e especificidade e o seu papel tradicional de entreposto.
A preservação do património arquitectónico com a atribuição pela UNESCO ao centro histórico de Macau do estatuto de património da Humanidade, a utilização de Macau para a difusão da língua portuguesa e a criação do Fórum para a Cooperação Económica da China com os Países de Língua Portuguesa vêm dar um novo fôlego à nossa presença e influência, não só na China, mas na Ásia em geral.
Julgo que deveríamos dar uma maior atenção sobretudo ao Fórum.
A nossa resposta inicial foi frouxa e pouco decidida. Devíamos ter procurado assumir uma copresidência do Fórum ao lado da China ou pelo menos a liderança de alguns grupos sectoriais mais virados para os nossos interesses. Não o fizemos e só agora elevámos o nível da nossa participação com a ida do Primeiro Ministro António Costa que se deslocou a Macau acompanhado do Primeiro Ministro da China Li Keqiang.
Enfim, mais vale tarde que nunca.
O potencial é grande e se bem aproveitado dar-nos-á uma vantagem competitiva que muitos países invejariam.
Infelizmente, encerrámos o Consulado Geral em Hong Kong por razões orçamentais dados os custos insuportáveis das rendas em Hong Kong.
O problema já se sentia quando eu servi em Hong Kong há trinta e sete anos. Propus uma solução que na altura era exequível. Por desinteresse de Lisboa e Macau não foi para a frente.
Estamos agora a pagar o preço.
A história repete-se vezes sem conta.
Vamos agora, e julgo que é um passo positivo, abrir um Consulado em Cantão, que virá, estou certo, com uma boa coordenação com Macau, Pequim e Xangai abrir novas oportunidades.
Já devia ter sucedido há mais tempo.
Na política como no futebol jogamos sempre à defesa à espera que a sorte nos bafeje com um golo, nos últimos minutos do jogo.
Também em relação a Portugal, a China viu o interesse que uma parceria connosco poderia ter.
A nossa boa relação mútua política, o factor língua sendo o português uma língua global falada em quatro continentes por mais de 250 milhões de pessoas, as nossas relações estreitas com os países lusófonos, e relações privilegiadas na África e América Latina, a nossa capacidade e facilidade de relacionamento com sociedades culturalmente diferentes, tudo terão constituído factores geradores do interesse chinês.
Igualmente a nossa posição geográfica, às portas da Europa e do Mediterrâneo e no Atlântico Norte a meio caminho entre a Europa e os Estados Unidos da América, a nossa reduzida dimensão e o facto de não termos pretensões a obter posições de domínio político ou económico com uma política externa com coordenadas bem balizadas, tudo pesou certamente na posição da China.
Porventura também certas das nossas fraquezas. As imposições da Troika e a necessidade das nossas empresas de se capitalizarem e de se internacionalizarem, fizeram surgir para os chineses excelentes oportunidades.
Julgo que será interessante contar-vos um episódio passado comigo.
Já estava nomeado para Washington D.C. e preparava-me para ir ocupar o meu novo posto, quando veio a Portugal em visita oficial o Sr. Li Lanqing. Acompanhei-o em todos os encontros.
O Sr. Li Lanqing era então Vice-Primeiro Ministro com responsabilidade pelos assuntos económicos, membro do Comité Permanente do Comité Central do Partido Comunista, órgão máximo na estrutura do poder na China.
Foi um dos colaboradores próximos de Deng Xiaoping para a implementação da política de reforma e abertura da China. Foi também Ministro do Plano e do Comércio Externo.
Enfim, era um peso pesado da política chinesa.
Foi recebido pelo Presidente da República, pelo Primeiro Ministro e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros.
A todos fez o mesmo discurso: a China tinha decidido dar prioridade à sua política em África.
Olhavam com interesse para os países de língua portuguesa, nomeadamente Angola e Moçambique.
Desejavam estabelecer parcerias connosco não para ajuda ao desenvolvimento, mas numa base empresarial, lucrativa.
Sabiam que nós tínhamos boas relações com um bom número de países africanos, falávamos a língua, conhecíamos o terreno, as condições sociais e económicas, tínhamos um bom conhecimento das instituições financeiras internacionais.
Estavam sobretudo a pensar nos países de língua portuguesa, mas queriam que as parcerias se estendessem a outros países.
Que eu saiba, tomámos boa nota do discurso do Sr. Li Lanqing, mas nada fizemos para dar seguimento à matéria.
Por inércia? Por receio da competição chinesa?
Não sei.
O que sei é que nos anos subsequentes, a China abriu linhas de crédito em África, nomeadamente Angola, de vários milhares de milhões de dólares e avançou sozinha para uma cooperação, em relação à qual nós poderíamos ter dado uma contribuição muito útil para os países em causa e proveitosa para as nossas empresas.
Só agora, passados catorze anos das propostas do Sr. Li Lanqing é que estamos finalmente a falar, numa base mais conceptual do que concreta, numa cooperação tripartida com a China em África.
Quanto às perspectivas futuras, julgo que a China constitui uma grande oportunidade.
As vantagens que a China vê em Portugal constituem para nós importantes trunfos que temos que usar com decisão e ambição.
É claro que temos que usar uma certa prudência.
A sociedade chinesa é uma sociedade complexa e cheia de contradições.
É ao mesmo tempo uma economia de mercado e uma economia de Estado.
Tem um sistema financeiro com uma grande intervenção do Estado.
O sistema judicial está longe de ser independente e de dar garantias adequadas.
A proteção dos direitos de propriedade intelectual nem sempre é perfeita.
Mas com o bom entendimento político existente devemos ser exigentes nas condições e nos detalhes dos nossos negócios.
Primeira condição, na minha opinião, para o florescimento dos negócios é um bom conhecimento mútuo.
Formar e desenvolver uma massa crítica e aproveitá-la sistematicamente.
O desenvolvimento de estudos chineses e o ensino da língua chinesa em instituições portuguesas nomeadamente nas universidades deve ser promovido, desejavelmente através de protocolos com instituições chinesas.
Igualmente, o ensino na China do português e de estudos portugueses, a divulgação da nossa história e da nossa cultura, através de um intercâmbio cultural, da TV e da imprensa deve ser intensificado.
A utilização das redes sociais poderá ser um instrumento com resultados efetivos que podem ser surpreendentes.
Devemos dar-lhe uma atenção muito especial e fazer um esforço muito dedicado e muito profissional.
Eu próprio já aconselhei o Ministro dos Negócios Estrangeiros, que ainda por cima é professor de Sociologia, para dotar o seu Ministério com uma equipa que junte informáticos, sociólogos e publicitários que ajudem as Embaixadas a adaptarem os respectivos sites aos países e a um certo número de objetivos específicos.
As redes sociais devem também ser aproveitadas para pôr em rede os quadros portugueses que trabalham e desenvolvem atividades na China e os estudantes portugueses sobretudo os que seguem ali cursos de pós-graduação.
É um repto que deixo aqui às empresas portuguesas para que desenvolvam ou apoiem uma rede que favoreça a interação de uma multiplicidade de potenciais agentes dos interesses portugueses na China.
Deixem-me finalmente para concluir dizer que os chineses são um povo com grandes qualidades.
Muito diferentes de nós, como a noite para o dia. Mas são inteligentes, trabalhadores, com um grande espírito de sacrifício e dedicação às missões que lhe são confiadas, industriosos, metódicos, organizados, ambiciosos, com gosto pelo risco mas também gostando de gozar a vida, joviais, amigos dos seus amigos.
Não têm contudo o mesmo grau de adaptabilidade a culturas diferentes, nem a mesma capacidade de miscigenação com outros povos que os portugueses têm mostrado em toda a sua História.
As qualidades dos chineses complementam-se bem com as dos portugueses.
Valorizemos pois os nossos pontos comuns, mas também as nossas diferenças.
Lisboa, 29 de novembro de 2016