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GABINETE DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA

 

PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES

 

SOLAR DA MADRE DE DEUS

 

ANGRA DO HEROÍSMO

 

 

INTERVENÇÃO DE SUA EXCELÊNCIA O REPRESENTANTE DA REPÚBLICA, EMBAIXADOR PEDRO CATARINO, NAS II JORNADAS DE DIREITO PENAL DOS AÇORES QUE TIVERAM LUGAR NA CIDADE DE PONTA DELGADA

 

13-julho-2012

 

 

 

II JORNADAS DE DIREITO PENAL DOS AÇORES

Acordos sobre a sentença penal

 

 

Desejava em primeiro lugar agradecer o amável convite que me foi dirigido pelos meritíssimos juízes Moreira das Neves, Soares de Albergaria e Rui Lima para participar nestas II Jornadas de Direito Penal dos Açores e dizer algumas palavras na sua sessão de abertura.

 

Apresento as minhas desculpas por apenas chegar a esta hora visto ter-me sido impossível vir ontem para Ponta Delgada e estar condicionado pelo horário das carreiras aéreas.

 

Permitam-me, meritíssimos Juízes, que os felicite por esta iniciativa, demonstrativa das vossas preocupações em aliar à vossa atividade quotidiana de julgar casos concretos o estudo de questões jurídicas de maior alcance teórico e das práticas seguidas noutros ordenamentos jurídicos. O meu apreço também à Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, à Associação Sindical dos Juízes Portugueses e à Companhia de Seguros Fidelidade por se terem associado à organização das presentes Jornadas.

 

Aproveito a ocasião para saudar muito cordialmente todos os magistrados judiciais e do Ministério Público em serviço nos Açores bem como todos os participantes nestas jornadas.  Permitam-me que dirija uma saudação muito especial ao Juiz Filipe Raposa.  Tive a honra, quando era Embaixador em Washington, de entregar ao seu filho uma alta condecoração concedida pelos Senhor Presidente da República ao Juiz Raposa, que estava nessa altura destacado em importantes funções internacionais em Timor Leste.

 

A administração da Justiça é uma das funções soberanas do Estado, que este tem necessariamente de assegurar em todo o território nacional. Não obstante a regionalização político-administrativa, em Estado unitário a função jurisdicional não é passível de regionalização.

 

Trata-se pois de uma área de relevância especial para o Representante da República.

 

Sigo assim, com particular interesse e cuidado, todos os desenvolvimentos respeitantes à Administração da Justiça nos Açores e podem contar, senhores magistrados, com o meu apoio e colaboração. Por isso aqui estou e faço-o com o maior prazer.

 

O tema destas Jornadas −  Acordos sobre a sentença penal – transcende pela sua especialidade e complexidade a minha formação e experiência profissional e o quadro das minhas competências como Representante da República, mais virado este último para o Direito Constitucional.

 

Se bem que licenciado em Direito – formei-me pela Faculdade de Direito de Lisboa em 1963 – e se bem que tenha exercido a advocacia num curto espaço de tempo em que prestei serviço militar obrigatório em Macau – toda a minha carreira profissional como diplomata distanciou-me da área jurídica.

 

Não completamente contudo: fui em 1973 delegado à 6ª Comissão (assuntos jurídicos) da Assembleia Geral das Nações Unidas e chefiei as delegações portuguesas às negociações relativas ao futuro de Macau e à renovação do Acordo das Lajes incluído num novo Acordo de Cooperação e Defesa com os EUA bem como na Comissão Paritária prevista na Concordata celebrada com a Santa Sé.

 

Mais tarde, fui ainda Presidente da Comissão Permanente de Contrapartidas cuja atividade se centrava na área dos contratos públicos.

 

Permitam-me que refira como curiosidade a minha atividade jurídico-diplomática relativa ao estatuto futuro de Macau que se tornou em 20 de Dezembro de 1999 a Região Administrativa Especial de Macau.

 

Uma das preocupações da parte portuguesa foi o estabelecimento de um quadro jurídico que concretizasse e fortalecesse um alto grau de autonomia para a futura Região Administrativa Especial de Macau, em relação ao Governo da República Popular da China, que ficasse garantido pelo menos nos 50 anos seguintes.

 

O regime autonómico da Região Administrativa Especial de Macau, se bem que tenha pontos comuns com o regime autonómico da Região Autónoma dos Açores, foi construído num contexto muito diferente sob o ponto de vista histórico, cultural, político e sócio-económico. Não deixa de ser no entanto interessante o confronto entre os dois regimes.

 

A autonomia de Macau é mais vincada e abrangente em alguns aspetos, mas mais subordinada e menos alargada noutros aspetos.

 

O regime autonómico da Região Administrativa Especial de Macau estabelece nomeadamente um poder judicial independente, com tribunais próprios, incluindo o de última instância, com uma organização judiciária autónoma da chinesa.

 

O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores limita-se, neste ponto, a consagrar “o direito a uma organização judiciária que tenha em conta as especificidades da Região”, naturalmente nos termos de lei que é matéria reservada à Assembleia da República.

Por outro lado, Macau tem um sistema de leis próprio, com códigos próprios, nomeadamente o Código Penal e o Código de Processo Penal. Excetua-se um reduzido número de leis da República Popular da China constantes do Anexo III da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.

A Região Autónoma dos Açores, por sua vez, é dotada constitucionalmente de uma ampla competência legislativa, embora os diplomas estruturantes da ordem jurídica e que mais diretamente contendem com a defesa da liberdade dos cidadãos sejam matéria reservada aos órgãos de soberania − como sucede com o Código Penal e o Código de Processo Penal.

Foi um esforço enorme o que foi feito em Macau, no período de transição, em que teve que proceder-se à localização de todas as leis vigentes no território com a respetiva tradução e as alterações e adaptações necessárias.

Considero pessoalmente que um dos legados mais importantes que deixámos em Macau e com maior relevância para o futuro da influência portuguesa naquele território foi exatamente o Direito de matriz portuguesa que continua ali vigente.

 

Dito isto, como curiosidade para uma assembleia de juristas como a aqui presente, passarei a fazer algumas observações de carácter genérico sobre a administração da Justiça e a reforma penal numa perspetiva constitucional.

 

É hoje um lugar-comum afirmar que a Justiça está em crise e que a imagem que os portugueses têm dela é negativa, sobretudo devido ao problema da excessiva morosidade dos processos e ao facto de a sua excessiva complexidade e onerosidade gerar uma “justiça para ricos” e uma “justiça para pobres”.

Essa crise, porém, não surge por acaso, resultando antes de opções políticas de fundo − comuns, aliás, a outros países do nosso universo civilizacional −, que ao longo do tempo têm feito deslocar a legitimação do Estado das suas tradicionais funções de segurança para as mais recentes funções sociais.

Alcançado um determinado patamar de paz social, a legitimação do poder do Estado aos olhos dos cidadãos tem sido procurada, cada vez mais, fora do contexto das suas funções soberanas da administração da justiça, da defesa nacional, da segurança interna e dos negócios estrangeiros.

Há uma alteração sub-reptícia do contrato social, em que o bem-estar social − saúde, educação e segurança social, principalmente − tendem a superar a responsabilidade fundamental do Estado em garantir a todos os cidadãos as condições de segurança necessárias ao pleno exercício da sua liberdade individual.

Por outro lado, o lugar-comum da crise da Justiça esquece igualmente que o sistema judiciário, pela sua própria natureza, acumula todas as tensões de uma sociedade que se tornou híper-complexa e híper-exigente. No sistema de administração da justiça desagua, portanto, uma conflitualidade crescente, fruto em larga medida do desaparecimento de muitos dos estabilizadores sociais automáticos, a começar pela censura comunitária inerente à violação da lei.

Por outro lado ainda, à constante amplificação dos “vícios públicos” do sistema de justiça não se contrapõe, no espaço mediático, uma ação pedagógica que faça também ressaltar, no registo adequado, aquelas que são seguramente as suas mais importantes “virtudes privadas”: profunda independência dos magistrados; trabalho abnegado e rigoroso nos processos; justiça material das decisões.

 

No horizonte, há certamente muitos motivos de incerteza e até de angústia. Mas é através da reflexão séria e desassombrada que se lançam as bases de uma reforma que permita superar progressivamente a crise instalada, a que a Justiça penal não está imune. Parafraseando Hegel, é precisamente com o cair do crepúsculo que o mocho de Minerva inicia o seu voo.

Por essa razão, é com muito prazer que profiro estas palavras de abertura deste Congresso, sobre “Acordos sobre a Sentença em Processo Penal”, porquanto me parece ser um tema que pode tornar-se a prazo na “pedra de toque” de uma profunda reforma do Processo Penal.

Segundo creio, na tarefa de reflexão que necessariamente antecede as reformas bem conseguidas no domínio em causa devem ter-se em conta três diretrizes indeclináveis, correspondentes a outros tantos planos de intervenção:

Primeiro, firmeza nos princípios axiológicos fundamentais próprios da administração da justiça penal;

Segundo, abertura quanto às regras legais de concretização desses mesmos princípios;

Terceiro, eficiência na gestão dos processos e do conjunto dos recursos públicos postos ao serviço da Justiça.

 

Assim, por um lado, não pode ceder-se à tentação de contornar ou de esvaziar o princípio da plenitude das garantias de defesa dos arguidos, que a Constituição aponta como trave-mestra do Processo Penal e declina sucessivamente noutros subprincípios:

             − Princípio da presunção de inocência

−  Direito a escolher e a fazer-se acompanhar por defensor

− Princípio do juiz natural

− Estrutura acusativa do processo e princípio do contraditório

− Proibições de prova

−  Princípio “in dubio pro reo”

−  Princípio “ne bis in idem”

−  Direito ao recurso

E, para além destes, há ainda que considerar aqueloutros que, apesar da sua maior abrangência, se repercutem no Processo Penal com especial acutilância:

−  Independência dos tribunais

−  Autonomia do Ministério Público

−  Dever de fundamentação das decisões judiciais

−  Direito a uma decisão num prazo razoável.

Se o Direito Penal é em larga medida um “sismógrafo da Constituição”, o Processo Penal, por sua vez, é um “Direito Constitucional concretizado”. É na Lei Fundamental que se depositam os princípios estruturantes do Estado de Direito democrático, formados ao longo de séculos e que são parte integrante da cultura jurídica e da tradição humanista do Ocidente. Eles representam, no seu conjunto e nas suas interações recíprocas, a espinha dorsal da ordem jurídica e, em particular, daqueles dois ramos da enciclopédia jurídica que tocam diretamente na mais sublime manifestação da dignidade da pessoa humana: a liberdade.

Por isso, da mesma forma que não se põe uma pessoa a andar partindo-lhe a coluna vertebral, também não é abdicando dos princípios axiológicos fundamentais do Processo Penal que se supera a crise da Justiça, como por vezes reclamam algumas vozes mais influenciáveis por argumentos populistas.

 

Em segundo lugar, como disse, exige-se uma grande abertura quanto às regras legais que disciplinam o processo, incluindo as que procedem à concretização dos princípios acima referidos.

Se os princípios têm por natureza uma estrutura jurídica flexível, que permite dar elasticidade ao sistema normativo, e se caraterizam por admitir uma pluralidade de concretizações legais, com diferentes níveis de intensidade, não há razão para que o legislador e os operadores judiciários fiquem por comodidade presos a soluções tradicionais, mas com resultados insatisfatórios.

Impõe-se, assim, uma interpretação não dogmática dos regimes vigentes e, quando tal se mostre necessário, e após ampla participação da comunidade jurídica, a adoção de soluções legais inovadoras, que correspondam ao sentir dos agentes processuais.

Com isto não se desvalorizam as regras processuais em vigor. Elas não são meras formalidades vazias de conteúdo ou destituídas de sentido. Bem pelo contrário, elas têm a sua razão de ser na redução da discricionariedade decisória e visam introduzir previsibilidade, racionalidade e objetividade na marcha do processo e no juízo estratificado sobre o facto que ao longo dele se vai efetuando.

Ademais, o seu cumprimento desempenha um duplo papel na realização do Estado de Direito. Por uma banda, fazem parte integrante do processo de justificação do poder punitivo do Estado −  exercido em nome do povo −, que ataca precisamente no núcleo dos bens jurídicos pessoais que mais prezamos. E, por outra banda, ainda que sem alinhar propriamente pelas teorias da validação pelo procedimento, não há dúvida que um processo justo, em que acusação e defesa têm as mesmas armas, conduz a decisões materialmente mais justas e que servem melhor os fins de prevenção geral e de prevenção especial que são apanágio do sistema penal.

Em todo o caso, quando se trata de inovar −  quer reintrepretando de jure condito normas vigentes em termos inovadores, quer reclamando de jure condendo a introdução de novas soluções −  é importante que se parta de um diagnóstico da realidade, atendendo a elementos estatísticos amplos e aos resultados de análises interdisciplinares, trazendo portanto para o universo jurídico conhecimentos oriundos das chamadas ciências auxiliares do Direito, mas também das próprias ciências sociais em geral.

 

Ainda sobre este segundo ponto, gostaria de referir que em tempos de globalização −  e numa sociedade de risco global −  é cada vez mais imprescindível o recurso ao Direito Comparado, hoje considerado como a quinta-essência do método jurídico, envolvendo o conhecimento das soluções adotadas nos sistemas jurídicos que podem considerar-se mais próximos do nosso, mas igualmente dos que nos são menos familiares, como é o caso do anglo-saxónico.

Esta atenção aos modelos seguidos nos países de “common law” não deve ser julgada aprioristicamente como uma americanização dos sistemas jurídicos continentais, nem menos ainda como uma cedência à “bargaining justice” vendida pela produção cinematográfica de Hollywood.

Do que se trata é antes de reconhecer que os sistemas jurídicos são cada vez mais permeáveis e que se caminha hoje, a passos largos, no sentido de um verdadeiro Direito Global, assente sobre um património jurídico comum e sobre uma linguagem universal, ambos construídos com o impulso decisivo da experiência de jurisdições internacionais de sucesso, no plano mundial e regional.

Neste sentido −  em inteira sintonia com aquele que julgo ser o tema deste encontro −  creio que há todo o interesse em analisar a introdução, no modelo tradicional de justiça imposta, espaços sucessivamente mais alargados de flexibilização e de cooperação entre os intervenientes no processo. Ou seja, espaços que ultrapassem tanto a justiça participada como a justiça consensual −  ambas já consagradas no ordenamento português −, avançando para a eventual construção de soluções de justiça negociada.

Seja como for, não está em causa a substituição de um modelo por outro, até porque o modelo adversarial e conflitual atualmente existente terá sempre que assumir-se como dominante, uma vez que ele é em larga medida conatural ao exercício do ius puniendi do Estado.

 

Finalmente, a eficiência da gestão do processo e dos recursos administrativos que ele mobiliza será porventura o aspeto mais descurado de todas as reformas processuais, embora seja aí que se concentra grande parte das variáveis que conduzem à morosidade de justiça.

Como é sabido, sob o influxo direto da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Constituição acabou por proceder à juridificação do tempo, ao introduzir no seu texto o direito fundamental a uma decisão num prazo razoável. A eficiência tornou-se, com esse gesto ousado, num critério jurídico com grande peso na avaliação do resultado do processo e, em geral, do trabalho da máquina judiciária. E, também neste contexto, a possibilidade de antecipar o desfecho de um processo através de um acordo pode representar um ganho muito significativo.

Mas não queria alongar-me mais, nem avançar por um terreno que não me compete. Gostaria apenas de desejar aos especialistas presentes um trabalho profícuo, de modo a que possa encontrar-se o “tempo da justiça”, algures a meio caminho entre o “tempo longo” que caracterizava a vida dos nossos antepassados e o “tempo curto” da atualidade mediática.

 

Ponta Delgada, 13 de Julho de 2012